26.11.22

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Há muita coisa que eu não consigo perceber - e algumas delas, dou graças aos céus por isso assim acontecer. Uma delas é a quantidade assombrosa de gente que se dedica nos dias de hoje a passar ondas positivas e a andarem, armados em Budas, a dar conselhos iluminados sobre como nós devemos andar abraçados uns aos outros, a transmitir energias positivas e a viver em harmonia com o Universo. Aqui na zona, temos um ashram que arrasta multidões, de tal forma que, segundo os últimos Censos, a nossa freguesia foi uma das poucas do concelho (e a única do interior!) a registar um aumento de população residente. Nada contra este movimento, atenção: se os locais vão falecendo e os descendentes cortaram os laços, qualquer grupo de pessoas que venha habitar este território é sempre bem-vindo. Especialmente quando os recém-chegados colocam os seus filhos nas escolas da região, fazem compras no comércio local, dão trabalho às formas de construção civil da zona. E fazem da feira mensal de velharias e produtos locais um sucesso desde a primeira edição, 

Todavia, há questões que não deixam de me surgir associadas ao ashram e aos seus seguidores.

1) o ashram é focado num líder, claro, e num líder carismático que arrasta multidões (basta ver a quantidade de gente que veio atrás dele), que professa ensinamentos derivados do budismo. Até aqui, nada de anormal. A primeira coisa que causa alguma estranheza são as regras para se poder visitar o ashram: nada de fotografias ou vídeos e os trabalhadores estão proibidos de falar sobre o que se passa lá dentro, de tal forma que mesmo as reportagens feitas por órgãos da comunicação social sobre o espaço são impedidas de registar imagens: se tudo o que se lá passa é tão positivo e bom, porque é proibido fotografar ou filmar o que quer que seja?

2) como disse, há centenas de pessoas a viver cá na freguesia graças a este ashram, pessoas que orbitam em redor dele e bebem todas as palavrinhas que o guru debita, frequentando as suas palestras e os seus retiros - e pagando por isso. Agora… essas pessoas vivem do quê? Algumas trabalham no restaurante entretanto aberto na sede de freguesia (e devo desde já dizer que a comida é de topo), mas não são muitas, portanto… de onde lhes vem o dinheiro para pagarem os retiros e as coisas do dia-a-dia? Certo, haverá os que trabalharão em regime de tele-trabalho, ainda antes da pandemia… mas todos? É que não se dá conta de muitos deles fazerem grande coisa - ou talvez eu esteja a olhar para o lado errado, também pode ser, admito. Muita desta malta vai-se dedicando a fazer produtos esotéricos, chás de toda a variedade, comidas veganas, vegetarianas e "normais", para quando se realizar o mercado de velharias e produtos locais venderem as suas obras uns aos outros… mas mais uma vez pergunto: todos?

Gostava de perceber todo este movimento hippie em busca da sustentabilidade ecológica e espiritual, do andarem descalços em todo o lado até mesmo no alcatrão da estrada, da necessidade de fazerem sabonetes de folhas de cânhamo e de pétalas de lírios colhidos numa noite de luar, do terem rebanhos de cavalos em que alguns até têm as costelas à mostra… Sim, parece que me desviei um bocado do objectivo inicial do post. Porém os novos habitantes do Alentejo profundo acabam por possuir estas características, vindos atrás das teorias de gurus ou de estilos de vida diferentes, desencantados com o capitalismo desenfreado e atirando-se de cabeça à primeira ideologia inclusiva que apareça. Não percebo, pronto.

 

PS: provavelmente dos textos mais parvos e sem nexo que escrevi - o que, num sítio onde temos "disfunções mentais", é obra. E ainda queria escrever um livro, eu…!

disfunção original de Carlos Loução às 23:12

30.10.22

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Há textos em que, assim que os começo, aparece uma vozinha lá no fundo da minha cabeça a gritar, alto e bom som: "NÃO ESCREVAS SOBRE ISSO! ISSO VAI DAR MERDA!" Só que, como o senso comum nunca foi muito o meu forte, eu lá os acabo e publico aqui neste espaço. Por acaso, o primeiro em que aconteceu isso não gerou a celeuma que eu receava (basicamente porque ninguém lê esta merda); todavia, como agora vou dar uma bordoada bem forte num autêntico ninho de vespas, não me devo safar. Bem, olhem, amiguinhos, tive muito gosto, etc e tal.
A nossa sociedade tem-se vindo a alterar ao longo dos anos, fruto da evolução própria das coisas, mas tem sido uma evolução que tem dado errado em diversos patamares. E num deles é a dita questão do ambiente. E começo com uma admissão: sim, o meio ambiente está doente, fruto de centenas de anos de atropelos ambientais com efeitos já a médio e longo prazo que podem colocar em causa a habitabilidade deste terceiro calhau a contar do Sol (e logo agora que descobrimos que conseguimos desviar meteoros perigosos sem ser preciso mandar dois vaivéns cheios de homens e máquinas de perfuração, nem chamar os Aerosmith para fazerem a música de acompanhamento da missão!). Tem-se feito muito mal a este planeta sem se pensar no dia de amanhã nem no planeta que vamos deixar aos nossos descendentes. Até aí, tudo certo.
O problema começa quando começamos a ver a espécie de jihad iniciada por grupos organizados de pessoas contra alvos pré-determinados. Atirar sopa contra obras de arte envergando t-shirts "Just Stop Oil" (Parem com o Óleo, numa tradução rasca)? Colarem-se a carros? Se a ideia é aparecerem nos noticiários de todo o mundo (e em constituírem material para programas humorísticos), parabéns, a manobra é um sucesso, mas em termos de efeitos práticos isso faz zero pelo ambiente. Alertar para os problemas que existem no mundo? Acho que os noticiários já se encarregam disso ("mas esses são controlados pela máquina capitalista e consumista que governa o mundo!", até parece que vos oiço dizer…). Mas não vejo utilidade em servir de "pega-monstros" no Museu do Louvre. A não ser que o objectivo seja mostrar "olhem para mim, preocupo-me tanto com o ambiente que até me colei à Mona Lisa com uma t-shirt da minha organização ambientalista!"
Neste município em que habito e trabalho, é fácil ganhar-se créditos no eco-fundamentalismo: basta dizer-se que se é contra as estufas e contra os eucaliptos. Atenção: não estou com isto a dizer que sou a favor da existência de estufas e de explorações agrícolas em pleno Parque Natural do Sudoeste Alentejano e da Costa Vicentina; lembro-me de uma reportagem sobre o caso, há meses, talvez na SIC, em que apareceu um responsável do PNSACV a falar e que até dava vergonha alheia só de ouvir, coisinha mais subserviente às empresas não conseguiriam arranjar. Diz-se que a exploração intensiva dos territórios está a matar o sudoeste alentejano, e eu acredito nisso – aliás, fiquei surpreso quando vim a saber que iam ser colocadas ainda mais estufas na zona do Brejão, se não me engano – e que as empresas são responsáveis por imensos crimes lesa-ambiente e contra os direitos humanos, com imigrantes ilegais a serem traficados de Bangladesh, Índia, Nepal, Paquistão e zonas limítrofes para trabalharem nas estufas por cascas de alho. Esse tem sido o segredo mais mal-guardado desde que se descobriu que o Putin era um homicida tresloucado ("Então se vês problema nisso tudo, qual é o teu problema?", perguntarão os críticos). O problema é que enchem-se posts no Facebook cheios de indignação com tudo o que se passa ao redor das estufas, fazem-se manifestações e quejandos… e vê-se poucos ou nenhuns resultados práticos, pois a laboração continua, os migrantes continuam a trabalhar nas estufas, e, de um modo geral, nada muda. Eu juro que, num Universo alternativo, gostava que os mais veementes protestantes contra o actual status quo no PNSACV pudessem ser mandantes e ditar as leis no município sobre o que ao meio ambiente diz respeito. Tenho um palpite que as coisas não se alterariam mormente – mas lá está, não passa de um palpite, pelo que nunca virei a saber se estou certo ou não.
Sobre os eucaliptos, a questão tem sido mais pacata, mas ainda gera celeuma por se plantarem e ainda existirem vastas centenas de hectares de eucaliptal nesta serra, uma vez que o eucalipto causa a seca dos terrenos e é uma árvore sinónima do capitalismo, secando tudo ao seu redor. Nesta questão, lamento imenso mas não consigo ser contra a sua existência no Alentejo. É que o ser-se contra o eucalipto é, acima de tudo, uma questão ideológica: basta dizer "não ao eucalipto!" para sermos considerados pessoas de bem e preocupadas com o ambiente… e ninguém se preocupa na economia da região que depende da existência de florestas de eucalipto, dos operadores de serras que os cortam quando já têm tamanho suficiente, dos operadores das máquinas que os carregam para os camiões, dos condutores de camiões que levam os troncos para as fábricas, dos vendedores e mecânicos de serras que as arranjam quando elas avariam… e dos donos dos terrenos que sempre recebem alguma coisa por venderem os eucaliptos à empresa (os terrenos que não são pertença da empresa, atente-se). Porque qual é a alternativa a ter-se um terreno com eucalipto? Fazer-se um projecto de sobreiros ou de medronheiros, porventura, pois são árvores autóctones. Mas demora tempo até se obter retorno desse investimento (se sobreviver à seca que cada vez mais vai invadindo este Sul), e é preciso limpar-se os terrenos todos os anos (ou a cada dois anos) para que o mato não invada o terreno; depois os donos dos terrenos morrem e os filhos não querem saber daquilo para nada pois vivem na cidade, deixam as propriedades entregues ao mato selvagem ("ao menos é autóctone", direis) e é um piscar de olhos até os terrenos terem mato maior que a altura de um homem e trazerem até à beira dos poucos terrenos habitados bichos selvagens que estragam as culturas… Talvez esteja ver as coisas por um prisma errado: ao contrário de muita gente, não digo que sou o dono da razão, nem tento evangelizar ninguém, apenas debito para aqui ideias minhas (e más, daí isto ser "Disfunções Mentais"); mas gostava de saber quais são as ideias que a malta da brigada ecológica tem para todos os trabalhadores que retiram o seu sustento das florestas de eucalipto. Mandam-se para a rua? Detona-se a economia de uma região onde há pouco emprego em nome da ideologia bacoca que apregoa aos sete ventos que “o eucalipto é mau e deve ser banido para todo o sempre”?
O meu medo é que, derivado da inocuidade de muitos dos protestos que têm sido feitos, se queira passar para o nível seguinte e se comece a orquestrar e levar a cabo atentados em nome do ambiente. Talvez seja uma loucura, admito, mas vejo fanatismo suficiente em alguma gente para imaginar que não haverá problemas em se colocar uma bomba numa refinaria de petróleo, por exemplo, ou numas estufas, para se marcar uma posição bem mais ruidosa sobre o ambiente e causar danos em quem causa danos no meio ambiente.
Voltando à questão dos protestos, é mesmo aí que toda a hipocrisia fica exposta: vemos milhares de miúdos em todo o mundo a carregar cartazes (de papel ou cartolina, mas também umas tabuletas de madeira), a desfilarem rua fora registando o momento nos seus telemóveis topo de gama (feitos em fábricas situadas em países onde a mão-de-obra custa umas cascas de alho, com baterias de lítio, o mesmo lítio que supostamente é tão mau que nem sequer se pode extrair em Portugal porque dá cabo do ambiente, anulando os possíveis postos de trabalho que pudessem vir a ser criados) e partilhando nas redes sociais. O que acontece depois do desfile? Claro, todos os cartazes vão entulhando os contentores do lixo ou ficam abandonados no meio da rua, o que derrota um bocado (“bocadinho”) o propósito de se fazer uma marcha pelo meio ambiente… mas talvez seja eu a ser tacanho.
Admito que às vezes eu próprio faço um protesto ecológico: quando paro o carro à beira da estrada para aquele aliviozinho da bexiga e tenho tempo, paro um bocado para recolher o lixo que se encontra nas redondezas, garrafas de vidro e plástico essencialmente mas não só, e levo-o para o ecoponto mais próximo. É um protesto silencioso e sobre o qual coloco exactamente zero fotografias nas redes sociais – assim falhando o objectivo de parecer que me importo com o meio ambiente. Mas ao menos fico no meu mundinho a achar que tive relevância para ajudar a reduzir um nadinha a minha pegada ecológica. Nós, os malucos, contentamo-nos com pouco.

disfunção original de Carlos Loução às 12:28

15.10.22

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As redes sociais, em especial aquele esgoto horroroso chamado Facebook, são um belo e esclarecedor espelho de como somos um povo fã de aparências, do falar bem e do fazer publicações para o “like”.
Esta introdução serve para praticamente tudo, mas hoje vou utilizá-la para lançar uma questão que me deixa um nadinha azedo (“também ficas azedo com qualquer merda!”), que é olhar para aquelas pessoas que abandonaram a sua terra natal à busca de uma vida melhor, depois vão para os grupos dos naturais dessa terra dizerem-se cheios de saudades da sua terra natal… sem, contudo, voltarem a lá colocar os pés.
Vamos por partes. Nada tenho contra quem teve de sair das aldeias, do Interior, de Portugal, rumo à cidade ou ao estrangeiro em busca de condições de vida dignas, quiçá de constituir família e que, com o passar dos tempos, acaba por se fixar nessa nova terra e tornar-se “natural” dessa terra. É algo perfeitamente normal e natural da condição humana procurarmos o nosso bem-estar, e se não o encontramos nas imediações temos de ir atrás dele. O que me irrita solenemente é olhar para os grupos (ou comunidades, agora…) de naturais e amigos da minha aldeia (ou “da aldeia de onde são os teus pais e que tu adoptaste como tua”) e, a cada publicação que lá é colocada, seja uma fotografia antiga, um vídeo ou a publicidade a um evento futuro, ver pessoas que nasceram na aldeia mas que estão longe a repetirem o mesmo discurso de “minha rica terra tenho tantas saudades do monte onde nasci da fonte onde íamos a água saudades muitas saudades” e que, em 52 semanas que o ano tem, não conseguem arranjar uma que seja para visitarem a terra que os viu partir, nem sequer no período das festas que é o mês de Agosto. Ainda por cima quando nessa altura existem tantas actividades para ocupar o tempo de quem nos visita (e nisso esta minha freguesia é abençoada). Será que as pessoas ganham pontos nisto do jogo da vida se mostrarem que têm “saudades muitas saudades”? Likes claro que ganham, e também uma chuva de comentários “é verdade amigo/a outros tempos que já lá vão um dia temos de nos encontrar” e seus derivados, e claro está que as redes sociais não passam de uma feira de vaidades onde todos nós fingimos ser os maiores da nossa rua mesmo que não tenhamos onde cair mortos, mas… vale mesmo a pena fazer estas figuras? Ainda por cima deixando ao abandono as casas e os montes onde nasceram e foram criados, onde tiveram as primeiras brincadeiras e onde começaram a ser gente? Como é que podemos dizer que temos “saudades muitas saudades” da nossa terra natal e depois deixamos que a casa que era dos nossos pais (e algumas mesmo dos avós) degradar-se e ruir, que os terrenos que dantes eram cultivados fiquem entregues às estevas e às silvas?
Todavia, há ainda um grupo de pessoas que me consegue deixar ainda mais azedo: são os que, para além das características acima referidas, ainda se acham no direito de dizerem aos “pacóvios” que ficaram na terra natal (ou aos que saíram e entretanto já regressaram) como devem viver. Lembro-me de um episódio que aconteceu há semanas, aquando da realização da feira anual da aldeia, em que, entre os comentários pejorativos derivados do facto de as barracas de tendeiros não serem muitas (intercalados por comentários de “saudades dos tempos que a feira tinha gado era uma animação ver os rebanhos de gado saudades muitas saudades” e de “saudades das feiras de antigamente essas é que eram boas o tempo tudo leva saudades muitas saudades”) surgiu uma pessoa a dizer que a feira devia de se reinventar para o século XXI. Muito bem, disse eu, então que ideias sugere para a feira?
*som de grilos*
E é isto. Dizer que “tem de se fazer!”, todos dizem, rasgam as camisas e batem no peito a dizer que amam a terra que os viu nascer mas que depois nem são capazes de dar uma simples ideia para mudar algo para melhor nessa mesma terra. Acrescentam ainda alguns que têm saudades da sua terra… mas de quando esta tinha muitos habitantes. Se se preocupassem em regressarem por uns dias aos seus montes e às suas casas de antigamente, veriam que até temos muita gente, a maioria estrangeiros, é um facto, mas até temos, de tal forma que a escola primária da sede de freguesia tem jovens suficientes para ter duas turmas (o privilégio de se ter uma professora por cada ano escolar continua reservado aos grandes centros urbanos, infelizmente).
Por isso, se têm “saudades muitas saudades” da vossa terra natal, visitem-na de vez em quando, venham matar essas saudades das pessoas que cá ficaram (ou entretanto regressaram), mas não se metam a proclamar que morrem de saudades se não estão a pensar lá voltar a meter os pés na vossa vida, que isso faz-vos parecer um bocadinho hipócritas. Só um bocadinho.

disfunção original de Carlos Loução às 09:13

11.09.22

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Isto de andar metido em projectos musicais faz com que, às vezes, me veja envolvido em situações que, depois, metemos as mãos na cabeça e pensamos "Que raio acabou de acontecer?" Talvez seja mesmo do meu próprio feitio, ou do facto de ser um tanso / ingénuo / …, mas olho para a vontade de certas pessoas se mostrarem, ou sobressaírem à viva força, e pergunto-me se vale a pena tanta coisa.

Isto tudo derivado de uma série de eventos que tem acontecido mensalmente em freguesias de um concelho alentejano. Depois de uma primeira tentativa, há meses, o projecto que integro recebeu um convite para participar na edição deste mês. E aqui cometeu-se um erro: não se respondeu ao mail recebido – não por maldade, mas apenas por uma questão de ir adiando a resposta até que, eventualmente, a correspondência electrónica entretanto recebida faz desaparecer o dito mail. Eis senão quando, para espanto dos actores do Centro, este aparece na programação do dito evento em todas as redes sociais. Depois de uma troca de ideias, e para não manchar o nome da instituição, cede-se e preparam-se as coisas para o grupo habitual comparecer no evento.

Dia do evento. Chegada ao local. Recepção por parte dos organizadores, tudo normal. O grupo, que consiste em dez alunos e dois monitores, é encaminhado para o local onde irá actuar, que não possui qualquer espécie de amplificação sonora e com cadeiras impróprias para quem vai manusear um instrumento musical (ou seja, com braços). Bom, paciência. Corações ao alto, bola para o mato, etc.. Temos à nossa volta um vasto grupo de pessoas, maioritariamente estrangeiros, de todos os tamanhos, feitios e cortes de cabelo. O silêncio que, por falta da amplificação sonora, acaba por ser imprescindível não existe, mas temos pessoas a olhar para nós, à espera do que vai sair dali. E assim começamos a tocar, apesar de os alunos não se conseguirem ouvir de ponta a ponta. E é então que surgem os telemóveis para nos filmar e/ou fotografar – eu costumo dizer que já fui filmado e fotografado mais vezes do que cabelos que tenho na cabeça, mas depois nunca chego a ver esses registos uma vez que, nos dias de hoje e com as definições de visibilidade das redes sociais, os mesmos apenas ficam visíveis para um grupo restrito de pessoas. Os telemóveis que vejo também me fazem pensar um pouco: uma grande maioria das pessoas que ali estão podem ser consideradas hippies, amantes da Natureza, eco-fundamentalistas, que são contra agricultura intensiva, explorações de petróleo e minas de lítio… todavia não se coíbem de adquirir os mais recentes iPhone ou Samsung ou Huawei ou qualquer outra marca de smartphone. Há alturas em que a hipocrisia humana é absolutamente deliciosa.

Mas continuemos. O grupo faz a sua actuação, o melhor possível face às condições providenciadas, e termina sob um coro de aplausos – nada a apontar ao público. Depois disso alguém (com ênfase no "alguém", não sei se da organização ou não) avisa que haverão pizzas para os miúdos, pelo que se espera mais um bocado, dá-se uma volta ao recinto, vê-se os vendedores de produtos locais, conversa-se aqui e ali com uma ou outra pessoa. As pizzas demoram a chegar – uma vez que são feitas artesanalmente e cozidas num pequeno forno – vêem duas a duas e, no total, são cinco… para dez alunos e dois monitores, devo recordar. Obviamente, à medida que as mesmas chegam imediatamente desaparecem. E depois desta fartura, levanta-se âncora, abandona-se o recinto do evento e regressa-se à base. Isto sem que pessoas da organização digam alguma coisa mais, ou sequer agradeçam pela actuação – ou apareçam, tão-pouco. E quando se abala, no palco principal – sim, havia um palco, se bem que do tamanho duma noz – um grupo ligava os seus instrumentos à aparelhagem de som para começar a tocar daí a pouco.

Gosto que haja eventos, estes fazem falta principalmente quando procuram dar vida ao interior. O problema é quando os eventos que se fazem parecem servir unicamente o propósito de meter alguém em bicos de pés, de mostrar que organização X consegue fazer eventos para promover a ruralidade e os produtos e produtores locais, mesmo que estejam lá muito poucos nativos e uma esmagadora maioria de estrangeiros a expor a sua produção vegetariana / vegana / biológica / …. Sabe-se que acaba por ser um reflexo da densidade populacional do interior do Alentejo, principalmente da zona serrana do Alentejo, mas acaba por ficar sempre um sabor de que estes eventos são direccionados para um público que não é o nativo. E, claro está, com a finalidade de servir de rampa de lançamento para promotores de eventos.

Não gosto de coisas feitas apenas para colocar terceiros debaixo dos holofotes. Mas, acima de tudo, não gosto de coisas feitas com tanta falta de respeito para quem é convidado a lá tocar (o que até nem foi bem o caso, uma vez que nunca houve uma resposta afirmativa ao convite que nos foi endereçado). Até porque este tipo de situações acaba por afectar e desmotivar os nossos alunos e deixar piores que estragados os seus familiares. Todavia acaba por servir de aprendizagem para todos – até para nós, que em casos deste género possivelmente iremos ter outra reacção.

disfunção original de Carlos Loução às 12:00

28.07.22

I Encontro de Tocadores de Viola Campaniça, Março de 2009

(alerta: texto enorme a caminho)

Tenho muitos poucos registos com o meu Mestre, com o meu professor de viola campaniça, com o Ti Manuel Bento. Isso acaba por me encher um bocado de tristeza – mas acaba por ser o reflexo da minha relação com esse tradicional instrumento.
Corria o Verão do ano de 1998. Estávamos de férias na casa da minha avó Emília (Deus lhe tenha a alma em descanso) num monte isolado perto do lugar da Corte Malhão, no concelho de Odemira, daqueles onde a electricidade continua a teimar em não chegar (ainda mesmo nos dias de hoje). Ouvia-se a rádio Castrense às quintas-feiras à noite, com o programa Património a levar até nós as poesias populares, os cantadores ao baldão e os tocadores de acordeão/concertina, harmónica e de uma tal viola que era diferente das de seis cordas, uma vez que era de oito cordas, duas a duas, e tinha uma cinturinha mais delgada. Como eu mostrei algum interesse por aquele instrumento, o meu pai perguntou-me se queria aprender a tocá-lo, tendo eu na altura dito que “porque não?”; e pouco tempo depois tinha nas minhas mãos uma viola daquelas que ouvia tocar no programa Património, feita por um construtor que não morava muito longe dali, Amílcar Martins da Silva (que também era tocador) – reza a lenda que ele achava aquela viola tão ruim que esteve para a atirar para um poço… e acabou por a vender por 50 contos. Antes de ma entregar, tocou um bocado bela para que eu visse como se fazia para se tocar – escusado será dizer que olhei para ele como um burro para um palácio, acabando por não perceber absolutamente nada daquilo. Voltaria lá algumas vezes para que o Sr. Amílcar me afinasse a viola, mas claro que quando eu regressava ao monte a viola já havia desafinado novamente (tempo quente é horrível para se manter um instrumento de cordas afinado, principalmente um de fraca qualidade…).
Durante dias, andei de volta daquela viola, tentando tocar qualquer coisa ali, mas não conseguia perceber a ciência daquilo, conseguia ir tocando qualquer coisinha mas duma forma muito arcaica e nada a ver com o que ouvia na rádio; e poderia ter sido esse o final da história e eu ter passado à História como um dos tentaram aprender a tocar viola campaniça e falharam (numa altura em que o instrumento se encontrava em perigo de extinção por falta de tocadores e por falta de interesse da malta jovem, apesar de o Pedro Mestre já ter começado uns anos antes); porém, não querendo que eu desistisse à primeira contrariedade, o meu pai perguntou-me, desta vez, se achava que devíamos procurar alguém que me ensinasse a tocar na viola campaniça; assenti e fomos à procura de um dos homenzinhos (utilizo esta palavra com carinho) de quem ouvia gravações no tal programa e que era considerado pelos seus pares o melhor tocador de viola campaniça existente, o Ti Manuel Bento. Não me recordo como fomos encaminhados, mas sei que dei por mim (mais o meu pai) no cemitério de Garvão, num funeral, a perguntar aqui e ali onde estava o Ti Manuel Bento. Um conhecido do meu pai lá nos apresentou e desde logo eu percebi que estava frente a frente com uma grande pessoa e um grande ser humano. Simpático, humilde, aceitou sem reservas tomar-me como seu aluno e mesmo nessa tarde, depois do funeral, estivemos os três no Lar de Ourique (seu poiso temporário após as cheias de 1997 o terem desalojado da sua casa na Funcheira) onde o Mestre me disse para esquecer os meus parcos avanços e mostrou os locais onde eu deveria colocar os dedos. Não me ensinou moda nenhuma nesse dia e “despachou-me” para o monte com aquela lição, recebendo a recomendação de que devia treiná-la durante a semana que antecedia a aula seguinte. E assim fiz: de vez em quando, parava as minhas brincadeiras, agarrava-me à viola (mesmo fracamente afinada) e repetia a lição que o Mestre Bento me havia ensinado.
Na semana seguinte, voltamos ao Lar de Ourique e eu mostrei, todo satisfeito, aquilo que eu conseguia fazer; e nesse dia o Ti Bento ensinou-me a minha primeira moda, de seu nome “Erva-cidreira”, curta o suficiente para ser simples mas que já dava para perceber o funcionamento do que tinha aprendido na aula anterior. Voltei para o monte para mais uma semana de treino, que abarquei com a mesma disciplina com que o tinha feito com a lição anterior. Quando regressámos ao Lar de Ourique, todavia, eu seria que aquela iria ser a última lição durante os tempos seguintes: as férias de Verão estavam a acabar, o regresso à Margem Sul estava eminente, pelo que iria estar demasiado longe do Mestre Bento para poder continuar a lá ir. Mesmo assim, mostrei-lhe a minha “Erva-cidreira” e ele transmitiu-me que estava bem tocada; e o meu pai tinha levado um gravador com uma cassete para gravar o Ti Bento e garantir que, durante os meses que eu ia estar na Margem Sul, tivesse algo para ouvir e treinar – muito, muito antes de saber o que era Internet e de haver a imaginar a existência do YouTube. E assim levei comigo a “Erva-cidreira” (para não a esquecer), mais o “Meu lírio roxo do campo” e a “Mariana Campaniça”. Lembro-me de me despedir do Mestre com pena, pois já começava a habituar-me àquela rotina de ir ao Lar de Ourique, de estar com aquele velhote simpático e afável e de aprender o que ele me ensinava. E se ele me queria ensinar! Quero acreditar que o facto de haver um miúdo a querer aprender os toques daquele instrumento o fez animar um pouco, visto ele ainda estar a fazer o luto da perda da esposa Perpétua Maria (também falecida em 1997, antes das cheias) e ter receio de não ter ninguém a quem pudesse passar a sua arte. No dia seguinte, se a memória não me atraiçoa (o que não garanto), eu e os meus pais ainda fomos à missa por alma da sua mulher, realizada na antiga escola primária da Funcheira entretanto convertida em capela.
Acabaram as férias e eu e a minha família regressámos a casa. Ocasionalmente voltávamos à casa da minha avó, sempre com a viola para baixo e para cima a meu lado no banco do Yugo 45A, mas sem tempo de irmos visitar o Mestres Bento para lhe mostrar a minha evolução. Se não me engano, o meu reencontro com ele foi nas férias do Natal, já ele se tinha mudado para umas casas da CP nas imediações da estação da Funcheira. Mostrei-lhe orgulhosamente as minhas três modas, ele sorriu e disse-me que não tinha muito mais para me ensinar, que daí para diante era uma questão de ir treinando e aprendendo modas novas.

A partir daí, a forma da minha aprendizagem modificou-se: depois do jantar, não havia serão que eu não fosse chamado a ir buscar a viola, para a minha avó, o meu tio e a minha mãe me ensinarem modas que eles conheciam (e eles conheciam imensas!) e, de vez em quando, o meu pai lá me levava ao Ti Bento para corrigir alguns erros que eu tivesse nas modas: numas não era preciso mexer em quase nada, noutras lá ouvia “Olhe que essa parte não é bem assim…” e ele mostrava-me como a tocava.
Foi por essa altura que ele me começou a falar no cante ao baldão (outra das coisas que eu ouvia no Património e me fascinava!), da estafa que às vezes apanhava durante esses momentos; ensinou-me a melodia do acompanhamento e convidou-me a aparecer num que iria ter lugar no lugar do Vale Ferro, freguesia de Relíquias, no recinto da antiga escola primária. O meu pai lá me levou e eu acabei por me sentar ao lado do Mestre Bento e de outro homem, também seu aluno mas de 60 anos de idade, de seu nome Antônio Bernardo da Aldeia das Amoreiras, principalmente cantador ao baldão (e que linda voz ele tinha!) mas que estava a aprender também a tocar viola “para haver alguém mais novo a aprender”; e naquela tarde o Ti Bento começou a acompanhar o cante mas, pouco depois, “passou-me a batata quente” e eu tive de me desenrascar com a (pouca) arte que tinha e a (fraca) resistência que tinha. Não me recordo de quanto tempo toquei, se fiz boa figura ou não; a única coisa que recordo dessa tarde é de um dos cantadores, o Marcelino do Castelão (Deus o tenha em descanso) a dizer que tinha trazido uma camisa reforçada para a porrada no cante e de a grande maioria dos cantadores (os com mais arte para isso, vá) se travarem de razões com ele por causa disso. Esse seria o primeiro de muitas centenas de cantes que eu acompanharia ao longo de mais de vinte anos, ao ponto de eu me tornar quase um profissional no acompanhamento no cante ao baldão, sendo chamado para festas, cantes privados, enfim, para acompanhar dezenas e dezenas de cantadores ao baldão, cuja maior parte já faleceu.

A minha ligação com o Mestre Manuel Bento, todavia, estagnou. Admito que tive alguma culpa nisso, mas também não quis incomodar o homem, que entretanto arranjara uma nova companheira. Por essa altura, salvo erro, já ele ensinara o Pedro Mestre e ele, enfim, não só tratou de dar nova vida à viola campaniça e a reconciliou com as demais violas de arame, deu também o destaque merecido ao Ti Manuel Bento, organizando uma homenagem em 2011, homenagem essa onde participei com todo o prazer. A fotografia que encabeça este post foi tirada uns anos antes, no I Encontro de Tocadores de Viola Campaniça, realizado em Castro Verde e organizado pelo Pedro, e nem é uma fotografia per se, mas sim um frame do filme do evento em que a câmara calhou a captar um momento em que eu conversava casualmente com o meu Mestre. Há mais algumas fotografias em que aparecemos os dois, tiradas nessa dita homenagem, mas não posso dizer que tenha uma fotografia tirada de propósito com ele, com o homem paciente e atencioso, que até nem gostava muito de tocar mas que gostava imenso de ensinar e que fez questão de deixar ao máximo possível de pessoas o seu dote e a sua arte.

Nunca tive oportunidade de lhe agradecer a paciência que teve comigo para me ensinar e o ter-me transmitido este saber (que hoje em dia é o meu ganha-pão) – ou falta de acanhamento para lho dizer. E quando faleceu, em 2015, eu estava na altura num estágio na Autoeuropa: o Pedro mandou-me mensagem a dizer que iam fazer uma homenagem no funeral, que gostavam que eu estivesse presente como um dos alunos dele; todavia, devido ao maldito estágio, não pude juntar-me a esse evento – ainda hoje me lamento por isso. Teria tido todo o prazer em tocar, junto ao seu caixão, a moda que ele me ensinou e que eu tocaria tantas horas a fio ao longo da vida, a “Marianita és baixinha”, melodia de acompanhamento ao cante ao baldão…
Não sei o dia ao certo, mas aquele encontro no cemitério de Garvão, há 24 anos, deve ter sido mais ou menos por esta altura. E a vida continua. E se, nos dias de hoje, posso ensinar miúdos e graúdos a tocar viola campaniça, depois de anos em que admito ter tratado esta arte com algum desmazelo, posso agradecê-lo ao Mestre Manuel Bento. Que pena não lho poder ter dito ainda em sua vida. E que pena não o ter feito sentir orgulho neste seu pupilo.

Obrigado. E desculpe.

disfunção original de Carlos Loução às 15:35

01.07.22

Foto: Luís Guerreiro / CMO

Não há como fugir: sempre que se fala de "cantares de improviso", a primeira coisa que as pessoas vão logo buscar é a desgarrada minhota, acompanhada à concertina ou ao acordeão, onde dois cantadores (ou duas cantadoras, ou um casal) ou mais, trocam entre si argumentos, que normalmente, e para gáudio da audiência, acabam sempre por ser questões ligadas com a braguilha. Todavia, Portugal não é apenas e só o Minho, da mesma forma que o fado não é exclusivo de Lisboa: há diversos sítios, de Norte ao Sul do país, passando pelas ilhas, onde se canta de improviso, se desafia o(s) parceiro(s) com cantigas feitas no momento. E, sendo eu alentejano (mesmo que não de nascimento, de família, de moradia, o que quiserem), claro que tenho de me preocupar com as duas formas de cantares ao desafio que aqui temos no Sul do país: o baldão e o despique.

sete anos, prometi que teria de fazer um post sobre esta temática, e desde então o assunto tem ficado na jarra. Engraçado que tenho desde essa altura nos "Rascunhos" desta xafarica um post sobre os cantes de improviso, a explicar como são e como funcionam. Um dia, talvez pegue nele e o acabe, pois talvez esse seja mais importante do que este que estou a fazer, onde basicamente vou confessar o meu desânimo pelo estado dos cantares ao improviso alentejanos.

Em 2014, o Cante Alentejano foi considerado Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO, o que motivou um fluxo de gente a procurar abraçar o cante, a divulgar o cante, a fazer o cante (e a esfaquear o cante de alto a baixo, mas isso são contas de outro rosário). Essa candidatura, claro está, não considerou o parente pobre do cante, ou seja os cantares de improviso - despique e baldão - que, basicamente, foram deixados à sua mercê para se desenrascarem como pudessem para sobreviver. A viola campaniça, por exemplo, e mercê do trabalho incomparável do meu amigo e colega de diversas tardes e noites de folia Pedro Mestre, está mais que salva, pelo menos por mais esta geração. O cante ao baldão e ao despique, ao invés, está em risco de desaparecer em meia-dúzia de anos, se nada fôr feito.

E o que tem sido feito? Algumas coisas. Por duas vezes os cantes de improviso alentejanos foram à rúbrica "Cantares ao Desafio" da "Praça da Alegria" da RTP, tendo da segunda vez alcançado um mui honroso segundo lugar na final. E o "Cante ao Baldão acompanhado à Viola Campaniça" também figurou no concurso das "7 Maravilhas da Cultura Popular", tendo ficado em 2º lugar na final regional e figurando no programa de repescagem. Pode parecer pouco, é certo, mas foram formas de mostrar ao país (e ao mundo lusófono, já agora) que existe esta forma de cantar, que está em risco de desaparecer e que urge fazer algo urgente por ela. Para além disso, o Centro de Valorização da Viola Campaniça e do Cante de Improviso, sediado em São Martinho das Amoreiras (concelho de Odemira), tem organizado, com regularidade mensal, Oficinas de Cante de Improviso onde cantadores veteranos procuram passar o seu saber a curiosos e interessados por esta forma tão característica de cantar.

Mas depois veio a pandemia. E tudo parou. Foi necessário procurar adaptar esta tentativa de entusiasmar pessoas para abraçar as novas tecnologias, daí ter-se feito vídeos de sensivelmente dez minutos em que dois cantadores esgrimem argumentos entre si, acompanhados à voiola campaniça, num modelo um pouco semelhante ao feito na "Praça da Alegria", com tema sorteado na altura.

E agora chegamos ao estado actual. Que é tudo menos sorridente. Temos, nesta altura, provavelmente, duas dezenas de cantadores ao baldão e ao despique. Só que, dessas duas dezenas, aproveita-se uma mão. E porquê? Porque a) não são capazes de discutir um assunto; b) não são capazes de respeitar o tom da viola campaniça que é suposto orientá-los; c) deixam que questões mesquinhas transtornem a sua forma de pensar e procurem desviar possíveis novos cantadores ("não cantes com aquele gajo, ele é um maniento de primeira e tem a mania que sabe tudo!"); d) apesar de terem uma voz perfeita para o cante, só aparecem quando muito bem lhes apetece e depois de lhes pedirem muito por favor e de joelhos que apareçam; e) só se sentem à vontade para cantar quando estão bêbados - altura em que nada do que dizem faz sentido; f) acreditam que o cante ao baldão deve ser uma mesa cheia de cantadores, e que fora disso não vale a pena meterem-se na roda; g) estão já velhos demais para essas andanças ou com problemas de saúde; e h) algumas ou todas as anteriores. O motivo f), inevitavelmente, acontece em cada festa anunciada nos concelhos de Odemira e Castro Verde - em específico nas Festas de Maio de Amoreiras-Gare e na Feira de Castro Verde - e acaba por resultar em algo que apenas pode ser considerado uma fraca propaganda ao cante de improviso: uma mesa com vinte ou trinta cantadores, em que um canta uma cantiga e só volta a cantar dali a perto de uma meia-hora. Qual é o cantor digno desse nome que consegue ter vontade de cantar nestes preparos? Quando o que é interessante é arranjar-se um tema, discutir-se uma temática, atacar o parceiro do lado por defender a dama errada enquanto apresenta argumentos que sustentam a sua posição... e, quer queiram quer não, esse tipo de cantes, os cantes que motivam, os cantes que têm interesse para o público que assiste, nunca podem ter mais de uma mão-cheia de cantadores; o ideal até seria mesmo cantarem dois a dois, o chamado "cantar de mão a mão", que a velha guarda designa depreciativamente como o "cantar dos manientos". Não há maneira de os promotores destes cantes (do qual a Feira de Castro Verde é o expoente máximo) se aperceberem que ter um cante com muitos cantadores não significa, de todo, ter um bom cante, muito pelo contrário. Basta ver, e continuando no exemplo da Feira de Castro, que, quando o cante começa o Auditório Municipal costuma estar cheio e, quando este termina, conta-se pelos dedos de uma mão a quantidade de gente que ainda lá está a assistir. Todos os anos isto acontece e, todos os anos, ninguém leva as mãos à cabeça e percebe que, se calhar, isto é sinal de que alguma coisa está errada. Se queremos que os jovens ganhem algum entusiasmo pelo cante ao baldão e ao despique, temos de lhes mostrar um cante ao baldão e ao despique mais interessante, mais arrojado, em que os cantadores se mordem uns nos outros, despicam entre si, motivam a audiência a manter-se agarrada às palavras que cada um canta. Uma mesa comprida com mais de vinte pessoas ali sentadas, uma a agradecer o convite que lhe foi dirigido, outro a saudar os presentes, outro a agradecer a qualidade da comida... não é promover o cante de improviso: é matá-lo! E o mais triste é ver uma grande fatia dos cantadores ao baldão a quererem seguir o caminho do Titanic, em vez de procurarem salvar esta tradição e impedir que desapareça - porque a única maneira de o salvar é cativar jovens, colocá-los no trilho certo, apoiá-los, trazê-los para a roda do cante, ensiná-los a estrutura das cantigas e a melodia. O Centro irá voltar a ter Oficinas de Cante de Improviso e aí procuraremos recuperar o tempo perdido com estes dois anos de pandemia, agora que já temos dois jovens capazes de fazer cantigas e de se meterem na roda e pelo menos mais três com interesse de se jogarem.

Há que salvar o cante ao baldão e ao despique da extinção. E dos velhos do Restelo, que só o afundam ainda mais.

disfunção original de Carlos Loução às 17:26

15.03.17

tumbleweed dry.jpg

Sim, mais um post sobre a desertificação.  E então?
Muita gente que habita nas imediações de Lisboa (qualquer grande cidade, na realidade, mas apetece-me implicar com os lisboetas, e agora?) entraria em pânico se precisasse de ir a um supermercado e este se situasse a uns 30 km de distância. Ou se tivesse um problema de saúde súbito que fosse necessário ir às urgências do hospital e estas estivessem localizadas a uns 70 km. E, todavia, existe muito boa gente que vive nessa realidade, em diversas zonas afastadas dos grandes centros de decisão; uma dessas zonas é aqui em que neste momento me encontro, nos confins do concelho de Odemira. Talvez esta fosse a zona a que o ex-ministro Mário "Jamé" Lino aludia quando se referiu ao "deserto". Sim, já sabemos que o interior está despovoado e ao abandono, que as vias de comunicação são de "passagem por" e não de "paragem em", que não há investimento suficiente para fazer as pessoas fixarem-se a estes meios pequenos. Então qual a solução? Deixar-se morrer quem ainda aqui vive e termos "aldeias-fantasma" à laia de atrações turísticas como hoje já temos as ruínas romanas, árabes e pré-históricas? Deixar que tudo isto se transforme num deserto como o do Sahara?
Só que ao mesmo tempo vem o reverso da medalha: como é que se convence alguém a investir nos meios rurais? Qual é a empresa que vai arriscar estabelecer-se num meio com pouca gente sabendo que todos os meios que necessita (matéria-prima, mão-de-obra) se encontram em quantidade insuficiente nas imediações? Só com grandes incentivos do Estado é que pode haver alguém a pensar nisso, o que não é solução, pois os cofres estatais não servem propriamente (ou não deviam servir) para esse tipo de coisas.
Então qual a solução? Pois, essa é que é a pergunta dos 50 mil euros. Mas "deixar morrer" é a solução que mais me revolta...

disfunção original de Carlos Loução às 10:35

18.05.16

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Vou retornar a um assunto que já abordei faz tempo. Bastante tempo, ao que parece. Isto porque em onze anos nada mudou.

Ao longo da história, a freguesia de São Martinho das Amoreiras tem andado a balançar entre dois municípios, o de Odemira e o de Ourique. Eventualmente, acabou por se tornar parte integrante do primeiro. Infelizmente.

Infelizmente porque o “maior concelho de Portugal” possui uma câmara que enche a boca para falar do seu tamanho mas que depois apenas se foca naquela faixa litoral que vai de Vila Nova de Milfontes a Aljezur, pejada de praias e que é um pólo de atracção para o turismo. E, desde os tempos que me lembro, as atenções que a cúpula camarária tem deitado ao restante território têm sido mínimas ou inexistentes – o que levou a que a vasta maioria do concelho esteja, na sua esmagadora maioria, votada ao abandono. E nem mesmo assim as pessoas e partidos que passam pela Câmara Municipal se movem para tentar dar condições de vida às poucas pessoas que ainda habitam nas freguesias interiores do concelho de Odemira. Claro, as aldeias e lugares possuem estradas alcatroadas, luz eléctrica… mas e as pessoas que não habitam nas aldeias e lugares? E quem vive no seu monte? Não é um ser humano como os habitantes do litoral? Não paga IMI como os do litoral? Como se justifica que, em 2016, ainda haja pessoas sem acesso a algo tão básico como a electricidade apenas e só porque a autarquia não está para gastar 50 mil euros para levar a luz à casa das pessoas? Em vez disso, colocou painéis solares nos montes das pessoas que ainda residem nos confins do concelho, o que seria algo de muito justo e nobre e uma alternativa viável… se a luz solar instalada tivesse potência para se ligar um frigorífico ou uma máquina de lavar roupa, ou se fosse possível ter mais do que uma tomada em toda a casa, o que não é o caso. Resultado? Quando há Sol, pode-se estar relativamente à vontade, ver-se um pouco de TV, mas nos dias mais cinzentos ou invernosos tem de se ter cuidado com a racionalização da luz: apenas para a iluminação.

Em Ourique, foi agora concluída a electrificação de duas zonas do concelho, onde foram gastos 75 mil euros no total. No concelho vizinho sempre houve muito a política de fazer, mesmo sem dinheiro (e daí terem acumulado uma dívida brutal, da qual têm estado a recuperar), enquanto em Odemira nunca se fazia porque “não havia dinheiro”; ironicamente, em 2014, a dívida odemirense era superior à de Ourique. Por causa desta diferença de filosofias camarárias é que o nível de vida dos habitantes do concelho de Ourique é bastante superior ao dos de Odemira. Por isso é que, voltando acima no texto, ainda temos habitantes da freguesia de São Martinho sem acesso a electricidade mas com “vizinhos” a um quilómetro que dispõem dessa mais-valia. Da última vez que a electricidade foi espalhada por mais uns montes ao redor do lugar da Corte Malhão, chegou-se ao cúmulo de se levar o cabo à porta de montes abandonados e em estado de ruína… enquanto outras casas habitadas eram ignoradas. E anda-se nesta batalha há mais de vinte anos, com quilos e mais quilos de promessas adiadas, pedidos arquivados, favores esquecidos. Apenas na altura das eleições se garante que “a electricidade vai chegar a todo o lado do concelho”, todavia isso nunca se chega a verificar.

O lema do concelho de Ourique é “por Ourique, pelos ouriquenses”; e o de Odemira, como será? “Pelo Litoral, pelos habitantes do litoral”?

disfunção original de Carlos Loução às 21:05

12.08.15

IMG_5473.jpg

Os grandes incêndios chegaram à minha fatia de paraíso, ao meu sanctum sanctorum. Algo que não acontecia há, pelo menos, sessenta anos aconteceu em 2015.

 

Foi por meados do mês passado que as chamas começaram a consumir mato em dois pontos relativamente próximos da freguesia de São Martinho das Amoreiras, concelho de Odemira, ambos junto à EM 503. Falou-se que foi fogo posto (o que não é de todo impossível, com dois fogos a começarem praticamente no mesmo tempo em dois sítios distantes entre si cinco quilómetros), falou-se que foram bocados de um pneu rebentado de uma camioneta de transporte de cortiça que caíram nos pastos à beira da estrada e atearam o incêndio. Não sei qual a verdade, nem sequer sou investigador de incêndios para apresentar uma teoria plausível. Nem interessa. Interessa, isso sim, é falar nas chamas monstruosas que pude ver a consumirem sobreiros e azinheiras e estevas e pasto e tudo o que apareceu. Interessa falar nos rugidos que as labaredas libertavam assim que ganhavam alturas superiores a vinte metros. Interessa falar dos gritos agonizantes de pessoas cujas habitações estavam na rota de uma das frentes do incêndio, que se ouviam claramente a quem estava a alguns quilómetros de distância e sem ser preciso o vento (praticamente inexistente nessa altura) para ajudar a propagar o som. Interessa sim falar em como rezei que o vento não se levantasse com força, visto soprar uma brisa ligeira, nem se virasse para que o incêndio não se propagasse na nossa direcção. Interessa sim falar de como o aparecimento de dois aviões de combate a incêndios fez lembrar aqueles filmes de acção em que os maus estão quase a conseguir dominar o mundo e, de súbito, aparece o herói e salva o dia. Interessa falar de como, seis horas depois do fogo ter começado, os aviões partiam com a missão cumprida e o incêndio ter sido dado como "em resolução", após ter envolvido 278 operacionais, 90 meios terrestres e 7 meios áereos.

 

E importa falar dos bombeiros. Talvez fira algumas sensibilidades, talvez, no final, eu acabe por ouvir alguns insultos. Talvez me acusem de ser injusto e ingrato. Só que, por muita boa vontade que tenha, não posso louvar a actuação dos "soldados da paz". Em primeiro lugar, demoraram a chegar à povoação da Corte Malhão, que se encontrava mesmo na rota do incêndio, porque ficaram retidos numa das pontas do incêndio devido à EM 503 estar com fogo de ambos os lados e não conhecerem caminhos alternativos – apesar de estarem em contacto via rádio com pelo menos uma pessoa que conhece bem a zona – e mesmo com corporações de bombeiros algarvias que, em podendo ir por um caminho mais curto, foram dar uma "volta ao bilhar grande" e ficando naturalmente encalhados. Depois, após esse obstáculo ter sido de alguma forma solucionado, muitos deles colocaram-se junto a algumas das casas mas ficaram de plantão, de braços cruzados, não se movendo no intuito de tentarem defender as habitações, parecendo ficarem à espera de… algo. As labaredas chegaram muito perto de algumas casas – quase rente às paredes, mesmo! – tendo sido necessário recorrer a algumas máquinas de rastos para abrirem aceiros e cortarem o avanço das chamas; só que, em muitos dos casos, as casas apenas tinham pasto rasteiro, perfeitamente controlável, sendo perfeitamente possível e exequível impedir sequer que as chamas ali chegassem… porque não se tratou logo disso em vez de fazer as pessoas sofrer com o aproximar daquela frente de incêndio? E, ainda relacionado com o mesmo assunto: quando se vê, já dias depois do incêndio, a área ardida e se constata que o fogo progrediu durante algum tempo por uma pastagem rasteirinha, sem mato nem árvores, sem qualquer oposição e acabou por queimar árvores e hortas e postes telefónicos, uma pessoa pergunta-se "porque é que os bombeiros não apagaram o incêndio ali, onde era fácil dar-lhe luta?". Não sei também que rescaldo foi feito porque, no dia seguinte, já depois do fogo estar dado como "em resolução", ainda se encontravam zonas aqui e ali onde se vislumbrava uma linguazita de fogo e não se viam bombeiros ao pé e porque, quase uma semana depois depois, ainda se encontrou uma árvore a arder. OK, talvez possa ser eu que não sei como se processa o rescaldo de um incêndio de mato, esta até posso dar de barato.

 

Bom, apesar de tudo, não arderam casas nem armazéns (ardeu um monte, mas já estava abandonado faz anos) e não houve danos pessoais – por pouco: um dos helicópteros de combate aos incêndios, após despejar o conteúdo do "balde", aproximou-se em demasia de um poste de electricidade e o balde embateu nos cabos, dando uma pirueta esquisita e quase passando por cima da hélice traseira, fazendo com que o helicóptero tivesse de fazer uma aterragem de emergência ali perto. O que há agora é uma enorme floresta de cotos queimados, esqueletos de sobreiros transformados em carvão, um cheiro a cinzas e a queimado sempre que se chega à aldeola vindo de São Martinho. Quem lucrou com isto? Não sei. Mas sei quem perdeu. Perderam as pessoas que aqui se dedicam à extracção de cortiça dos sobreiros, uma vez que uns valentes hectares de floresta de sobro está irremediavelmente perdida, perderam as pessoas daquela área, pois agora têm de conviver com uma enorme mancha cinzenta à sua porta, e, no fundo, perdemos nós todos, pois são menos árvores para renovar o oxigénio.

 

Sinto-me triste.

 

PS: é verdade que os bombeiros recebem por área ardida?

disfunção original de Carlos Loução às 10:49

15.01.15

Fonte: livro "Viola Campaniça - O Outro Alentejo", do Dr. José Alberto Sardinha, ed. Tradisom

 Se falarmos do nome "Manuel Bento", 99,95% das pessoas lembrar-se-ão imediatamente do guarda-redes de Riachense, Goleganense, Barreirense, Benfica e Selecção Nacional, desaparecido há perto de sete anos. Todavia, há um grupo bastante mais pequenino de pessoas, com ligação à cultura e às tradições do Alentejo, que se recordarão de um homenzinho, originário da Aldeia Nova – aglomerado de casas submerso pela Barragem do Monte da Rocha, perto de Ourique, muito antes de se falar em Alqueva e em deslocalizar aldeias – que se tornou conhecido por ser um fenomenal executante de viola campaniça, a viola tradicional do Alentejo, de quarto ou cinco cordas duplas e que esteve perto da extinção na década de 70 do século passado mas que ressurgiu anos mais tarde graças ao programa “Património” da Rádio Castrense e à primeira edição do livro “Viola Campaniça – O Outro Alentejo”, do Dr. José Alberto Sardinha – mas o assunto e história da viola campaniça é longo, merecedor de um post dedicado exclusivamente a isso.

Voltemos, assim, à vaca fria. Sim, este post é sobre esse Manuel Bento, desconhecido da esmagadora maioria da população portuguesa. O Ti Manuel Bento.

 

Muitos de vós estarão a ler isto e a pensar “porque raio está este gajo a falar de um velhote que toca guitarra viola1 no Alentejo?”. A questão é respondida em duas partes. Em primeiro lugar, porque o Ti Manuel Bento é um baluarte da cultura alentejana, sempre com a sua viola campaniça a tocar, seja a acompanhar cante a baldão2 ou modas alentejanas; e neste aspecto das modas, ele, a mulher, a Ti Perpétua Maria, e o seu tio (apesar de mais novo que ele dois anos), Francisco António Bailão, formaram um grupo que ficará para sempre na memória de todos os que são apaixonados pela música alentejana, que viajou pelo país e além-fronteiras sempre a espalhar a cultura e a música do Baixo Alentejo.

Em segundo lugar, porque o Ti Manuel Bento, último resistente desse trio que me encantou (e continua a encantar, por intermédio de gravações) em moço novo, deixou-nos ontem.

 

Conheci-o em 1998. Na altura, eu era um puto de 14 anos, estava de férias na minha terra (um monte perdido na freguesia de São Martinho das Amoreiras, concelho de Odemira) mais a minha família, com uma viola campaniça oferecida por meu pai. Depois de alguns dias de roda dela, a tentar perceber como funcionava aquele instrumento, o meu pai deu-me a ideia de procurarmos o Ti Bento para me dar umas lições de como tocar na campaniça. Naquela altura, ele encontrava-se no Lar de Ourique após as grandes cheias de 1997 que lhe inundaram a sua casita na Funcheira. Recordo-me que, curiosamente, fomos ter com ele ao cemitério de Garvão, pois havia ido ao funeral de uma pessoa amiga. Falámos com ele, na possibilidade de me dar umas lições de viola campaniça, e logo no primeiro contacto foi mais que evidente a sua simpatia e solicitude para ensinar, para que aquele toque não se perdesse, pois “já só uns velhotes é que tocam isto, quando nós morrermos, acaba-se a viola”. Depois do serviço fúnebre, demos-lhe boleia até Ourique e naquela tarde ele ensinou-me os pontos principais da viola, onde devia colocar os dedos, e regressámos ao monte. Pratiquei e pratiquei e, dias mais tarde, regressei a Ourique para mostrar-lhe se estava a ir bem. Ele nessa altura ensinou-me a tocar a Erva Cidreira, uma moda simples mas que permitia compreender bem os pontos que eu havia aprendido anteriormente. Mais uma vez regressei ao monte, pratiquei e pratiquei e regressei lá uns dias mais tarde, para mais uma aula, levando um rádio com gravador para se gravar mais umas modas – pois as férias estavam a acabar e, poucos dias depois, regressaríamos à urbe. O Ti Bento tocou o Meu Lírio Roxo do Campo e a Mariana Campaniça para gravarmos e disse-me que o essencial eu já sabia, agora era praticar. E foi isso que fiz. Recordo-me ainda que por essa altura eu mais a minha família fomos à missa de um ano da sua mulher e companheira de cante, a Ti Perpétua, falecida em 1997 (obviamente), numa antiga escola convertida em capela na Funcheira. Meses mais tarde, quando fomos de férias lá abaixo pelo Natal, salvo erro, fomos ter com ele novamente, creio que já numa casita apertada na Funcheira, propriedade da CP onde havia sido realojado após sair do lar, mostrei-lhe os meus avanços e ele sorriu, dizendo que não precisava de lá ir mais para aprender, que comigo e com o Pedro Mestre, um rapazito que andava a aprender com o Ti Chico Bailão, a viola campaniça poder-se-ia manter ainda mais uns anos – hoje em dia, o Pedro Mestre é o principal impulsionador da viola campaniça no Baixo Alentejo, com inúmeras iniciativas para incentivar o toque junto dos jovens, conseguindo mesmo ter uma escola de miúdos que hoje em dia já tocam a viola campaniça.

 

Com a morte do Ti Manuel Bento, desaparece o último resistente de uma geração de tocadores de viola campaniça que foi praticamente esquecida nas décadas de 1960 e 1970 e que acabaria, através de algumas coincidências e timings felizes, por estar na base do ressurgimento deste instrumento tão castiço. Uma geração que incluía gente cujo talento era directamente proporcional à sua anonimidade, como, para além dos já citados Ti Bento e Ti Chico, o Ti Manuel Verónica (que Ti Bento jurava ser o melhor tocador que ele alguma vez viu, melhor mesmo que ele próprio), com um estilo diferente do que se ouve nos dias de hoje, ou o Ti António Jacinto Figueirinhas, o primeiro tocador a ser encontrado pelo Dr. José Alberto Sardinha – encontro esse que acabaria por lançar este advogado na rota da viola campaniça, resultando na primeira edição do livro+vinil “Viola Campaniça – O Outro Alentejo”, publicação que acabou por despoletar o ressurgimento deste instrumento. Quero imaginar que, neste momento, o Ti Bento já se juntou à Ti Perpétua e ao Ti Chico e que andem agora a inundar o Céu com modas alentejanas, ou que estará a acompanhar o cante a baldão com cantadores como o António Bernardo, o António do Pinho, o Leonel do Salgueiro, o Ti Cremilde, entre tantas outras vozes que já nos deixaram.

Até sempre, Mestre.

 

 

 


1- Tem sido uma coisa que me tem mexido com os nervos, falarem de “guitarra campaniça”, ou guitarra. Viola é viola, guitarra é guitarra, gaita!

2- Forma de cante a desafio, por norma (mas não obrigatoriamente) acompanhada a viola campaniça. Também seria um bom tema para um post, falar disto.

disfunção original de Carlos Loução às 16:24

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