(alerta: texto enorme a caminho)
Tenho muitos poucos registos com o meu Mestre, com o meu professor de viola campaniça, com o Ti Manuel Bento. Isso acaba por me encher um bocado de tristeza – mas acaba por ser o reflexo da minha relação com esse tradicional instrumento.
Corria o Verão do ano de 1998. Estávamos de férias na casa da minha avó Emília (Deus lhe tenha a alma em descanso) num monte isolado perto do lugar da Corte Malhão, no concelho de Odemira, daqueles onde a electricidade continua a teimar em não chegar (ainda mesmo nos dias de hoje). Ouvia-se a rádio Castrense às quintas-feiras à noite, com o programa Património a levar até nós as poesias populares, os cantadores ao baldão e os tocadores de acordeão/concertina, harmónica e de uma tal viola que era diferente das de seis cordas, uma vez que era de oito cordas, duas a duas, e tinha uma cinturinha mais delgada. Como eu mostrei algum interesse por aquele instrumento, o meu pai perguntou-me se queria aprender a tocá-lo, tendo eu na altura dito que “porque não?”; e pouco tempo depois tinha nas minhas mãos uma viola daquelas que ouvia tocar no programa Património, feita por um construtor que não morava muito longe dali, Amílcar Martins da Silva (que também era tocador) – reza a lenda que ele achava aquela viola tão ruim que esteve para a atirar para um poço… e acabou por a vender por 50 contos. Antes de ma entregar, tocou um bocado bela para que eu visse como se fazia para se tocar – escusado será dizer que olhei para ele como um burro para um palácio, acabando por não perceber absolutamente nada daquilo. Voltaria lá algumas vezes para que o Sr. Amílcar me afinasse a viola, mas claro que quando eu regressava ao monte a viola já havia desafinado novamente (tempo quente é horrível para se manter um instrumento de cordas afinado, principalmente um de fraca qualidade…).
Durante dias, andei de volta daquela viola, tentando tocar qualquer coisa ali, mas não conseguia perceber a ciência daquilo, conseguia ir tocando qualquer coisinha mas duma forma muito arcaica e nada a ver com o que ouvia na rádio; e poderia ter sido esse o final da história e eu ter passado à História como um dos tentaram aprender a tocar viola campaniça e falharam (numa altura em que o instrumento se encontrava em perigo de extinção por falta de tocadores e por falta de interesse da malta jovem, apesar de o Pedro Mestre já ter começado uns anos antes); porém, não querendo que eu desistisse à primeira contrariedade, o meu pai perguntou-me, desta vez, se achava que devíamos procurar alguém que me ensinasse a tocar na viola campaniça; assenti e fomos à procura de um dos homenzinhos (utilizo esta palavra com carinho) de quem ouvia gravações no tal programa e que era considerado pelos seus pares o melhor tocador de viola campaniça existente, o Ti Manuel Bento. Não me recordo como fomos encaminhados, mas sei que dei por mim (mais o meu pai) no cemitério de Garvão, num funeral, a perguntar aqui e ali onde estava o Ti Manuel Bento. Um conhecido do meu pai lá nos apresentou e desde logo eu percebi que estava frente a frente com uma grande pessoa e um grande ser humano. Simpático, humilde, aceitou sem reservas tomar-me como seu aluno e mesmo nessa tarde, depois do funeral, estivemos os três no Lar de Ourique (seu poiso temporário após as cheias de 1997 o terem desalojado da sua casa na Funcheira) onde o Mestre me disse para esquecer os meus parcos avanços e mostrou os locais onde eu deveria colocar os dedos. Não me ensinou moda nenhuma nesse dia e “despachou-me” para o monte com aquela lição, recebendo a recomendação de que devia treiná-la durante a semana que antecedia a aula seguinte. E assim fiz: de vez em quando, parava as minhas brincadeiras, agarrava-me à viola (mesmo fracamente afinada) e repetia a lição que o Mestre Bento me havia ensinado.
Na semana seguinte, voltamos ao Lar de Ourique e eu mostrei, todo satisfeito, aquilo que eu conseguia fazer; e nesse dia o Ti Bento ensinou-me a minha primeira moda, de seu nome “Erva-cidreira”, curta o suficiente para ser simples mas que já dava para perceber o funcionamento do que tinha aprendido na aula anterior. Voltei para o monte para mais uma semana de treino, que abarquei com a mesma disciplina com que o tinha feito com a lição anterior. Quando regressámos ao Lar de Ourique, todavia, eu seria que aquela iria ser a última lição durante os tempos seguintes: as férias de Verão estavam a acabar, o regresso à Margem Sul estava eminente, pelo que iria estar demasiado longe do Mestre Bento para poder continuar a lá ir. Mesmo assim, mostrei-lhe a minha “Erva-cidreira” e ele transmitiu-me que estava bem tocada; e o meu pai tinha levado um gravador com uma cassete para gravar o Ti Bento e garantir que, durante os meses que eu ia estar na Margem Sul, tivesse algo para ouvir e treinar – muito, muito antes de saber o que era Internet e de haver a imaginar a existência do YouTube. E assim levei comigo a “Erva-cidreira” (para não a esquecer), mais o “Meu lírio roxo do campo” e a “Mariana Campaniça”. Lembro-me de me despedir do Mestre com pena, pois já começava a habituar-me àquela rotina de ir ao Lar de Ourique, de estar com aquele velhote simpático e afável e de aprender o que ele me ensinava. E se ele me queria ensinar! Quero acreditar que o facto de haver um miúdo a querer aprender os toques daquele instrumento o fez animar um pouco, visto ele ainda estar a fazer o luto da perda da esposa Perpétua Maria (também falecida em 1997, antes das cheias) e ter receio de não ter ninguém a quem pudesse passar a sua arte. No dia seguinte, se a memória não me atraiçoa (o que não garanto), eu e os meus pais ainda fomos à missa por alma da sua mulher, realizada na antiga escola primária da Funcheira entretanto convertida em capela.
Acabaram as férias e eu e a minha família regressámos a casa. Ocasionalmente voltávamos à casa da minha avó, sempre com a viola para baixo e para cima a meu lado no banco do Yugo 45A, mas sem tempo de irmos visitar o Mestres Bento para lhe mostrar a minha evolução. Se não me engano, o meu reencontro com ele foi nas férias do Natal, já ele se tinha mudado para umas casas da CP nas imediações da estação da Funcheira. Mostrei-lhe orgulhosamente as minhas três modas, ele sorriu e disse-me que não tinha muito mais para me ensinar, que daí para diante era uma questão de ir treinando e aprendendo modas novas.
A partir daí, a forma da minha aprendizagem modificou-se: depois do jantar, não havia serão que eu não fosse chamado a ir buscar a viola, para a minha avó, o meu tio e a minha mãe me ensinarem modas que eles conheciam (e eles conheciam imensas!) e, de vez em quando, o meu pai lá me levava ao Ti Bento para corrigir alguns erros que eu tivesse nas modas: numas não era preciso mexer em quase nada, noutras lá ouvia “Olhe que essa parte não é bem assim…” e ele mostrava-me como a tocava.
Foi por essa altura que ele me começou a falar no cante ao baldão (outra das coisas que eu ouvia no Património e me fascinava!), da estafa que às vezes apanhava durante esses momentos; ensinou-me a melodia do acompanhamento e convidou-me a aparecer num que iria ter lugar no lugar do Vale Ferro, freguesia de Relíquias, no recinto da antiga escola primária. O meu pai lá me levou e eu acabei por me sentar ao lado do Mestre Bento e de outro homem, também seu aluno mas de 60 anos de idade, de seu nome Antônio Bernardo da Aldeia das Amoreiras, principalmente cantador ao baldão (e que linda voz ele tinha!) mas que estava a aprender também a tocar viola “para haver alguém mais novo a aprender”; e naquela tarde o Ti Bento começou a acompanhar o cante mas, pouco depois, “passou-me a batata quente” e eu tive de me desenrascar com a (pouca) arte que tinha e a (fraca) resistência que tinha. Não me recordo de quanto tempo toquei, se fiz boa figura ou não; a única coisa que recordo dessa tarde é de um dos cantadores, o Marcelino do Castelão (Deus o tenha em descanso) a dizer que tinha trazido uma camisa reforçada para a porrada no cante e de a grande maioria dos cantadores (os com mais arte para isso, vá) se travarem de razões com ele por causa disso. Esse seria o primeiro de muitas centenas de cantes que eu acompanharia ao longo de mais de vinte anos, ao ponto de eu me tornar quase um profissional no acompanhamento no cante ao baldão, sendo chamado para festas, cantes privados, enfim, para acompanhar dezenas e dezenas de cantadores ao baldão, cuja maior parte já faleceu.
A minha ligação com o Mestre Manuel Bento, todavia, estagnou. Admito que tive alguma culpa nisso, mas também não quis incomodar o homem, que entretanto arranjara uma nova companheira. Por essa altura, salvo erro, já ele ensinara o Pedro Mestre e ele, enfim, não só tratou de dar nova vida à viola campaniça e a reconciliou com as demais violas de arame, deu também o destaque merecido ao Ti Manuel Bento, organizando uma homenagem em 2011, homenagem essa onde participei com todo o prazer. A fotografia que encabeça este post foi tirada uns anos antes, no I Encontro de Tocadores de Viola Campaniça, realizado em Castro Verde e organizado pelo Pedro, e nem é uma fotografia per se, mas sim um frame do filme do evento em que a câmara calhou a captar um momento em que eu conversava casualmente com o meu Mestre. Há mais algumas fotografias em que aparecemos os dois, tiradas nessa dita homenagem, mas não posso dizer que tenha uma fotografia tirada de propósito com ele, com o homem paciente e atencioso, que até nem gostava muito de tocar mas que gostava imenso de ensinar e que fez questão de deixar ao máximo possível de pessoas o seu dote e a sua arte.
Nunca tive oportunidade de lhe agradecer a paciência que teve comigo para me ensinar e o ter-me transmitido este saber (que hoje em dia é o meu ganha-pão) – ou falta de acanhamento para lho dizer. E quando faleceu, em 2015, eu estava na altura num estágio na Autoeuropa: o Pedro mandou-me mensagem a dizer que iam fazer uma homenagem no funeral, que gostavam que eu estivesse presente como um dos alunos dele; todavia, devido ao maldito estágio, não pude juntar-me a esse evento – ainda hoje me lamento por isso. Teria tido todo o prazer em tocar, junto ao seu caixão, a moda que ele me ensinou e que eu tocaria tantas horas a fio ao longo da vida, a “Marianita és baixinha”, melodia de acompanhamento ao cante ao baldão…
Não sei o dia ao certo, mas aquele encontro no cemitério de Garvão, há 24 anos, deve ter sido mais ou menos por esta altura. E a vida continua. E se, nos dias de hoje, posso ensinar miúdos e graúdos a tocar viola campaniça, depois de anos em que admito ter tratado esta arte com algum desmazelo, posso agradecê-lo ao Mestre Manuel Bento. Que pena não lho poder ter dito ainda em sua vida. E que pena não o ter feito sentir orgulho neste seu pupilo.
Obrigado. E desculpe.