Não há como fugir: sempre que se fala de "cantares de improviso", a primeira coisa que as pessoas vão logo buscar é a desgarrada minhota, acompanhada à concertina ou ao acordeão, onde dois cantadores (ou duas cantadoras, ou um casal) ou mais, trocam entre si argumentos, que normalmente, e para gáudio da audiência, acabam sempre por ser questões ligadas com a braguilha. Todavia, Portugal não é apenas e só o Minho, da mesma forma que o fado não é exclusivo de Lisboa: há diversos sítios, de Norte ao Sul do país, passando pelas ilhas, onde se canta de improviso, se desafia o(s) parceiro(s) com cantigas feitas no momento. E, sendo eu alentejano (mesmo que não de nascimento, de família, de moradia, o que quiserem), claro que tenho de me preocupar com as duas formas de cantares ao desafio que aqui temos no Sul do país: o baldão e o despique.
Há sete anos, prometi que teria de fazer um post sobre esta temática, e desde então o assunto tem ficado na jarra. Engraçado que tenho desde essa altura nos "Rascunhos" desta xafarica um post sobre os cantes de improviso, a explicar como são e como funcionam. Um dia, talvez pegue nele e o acabe, pois talvez esse seja mais importante do que este que estou a fazer, onde basicamente vou confessar o meu desânimo pelo estado dos cantares ao improviso alentejanos.
Em 2014, o Cante Alentejano foi considerado Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO, o que motivou um fluxo de gente a procurar abraçar o cante, a divulgar o cante, a fazer o cante (e a esfaquear o cante de alto a baixo, mas isso são contas de outro rosário). Essa candidatura, claro está, não considerou o parente pobre do cante, ou seja os cantares de improviso - despique e baldão - que, basicamente, foram deixados à sua mercê para se desenrascarem como pudessem para sobreviver. A viola campaniça, por exemplo, e mercê do trabalho incomparável do meu amigo e colega de diversas tardes e noites de folia Pedro Mestre, está mais que salva, pelo menos por mais esta geração. O cante ao baldão e ao despique, ao invés, está em risco de desaparecer em meia-dúzia de anos, se nada fôr feito.
E o que tem sido feito? Algumas coisas. Por duas vezes os cantes de improviso alentejanos foram à rúbrica "Cantares ao Desafio" da "Praça da Alegria" da RTP, tendo da segunda vez alcançado um mui honroso segundo lugar na final. E o "Cante ao Baldão acompanhado à Viola Campaniça" também figurou no concurso das "7 Maravilhas da Cultura Popular", tendo ficado em 2º lugar na final regional e figurando no programa de repescagem. Pode parecer pouco, é certo, mas foram formas de mostrar ao país (e ao mundo lusófono, já agora) que existe esta forma de cantar, que está em risco de desaparecer e que urge fazer algo urgente por ela. Para além disso, o Centro de Valorização da Viola Campaniça e do Cante de Improviso, sediado em São Martinho das Amoreiras (concelho de Odemira), tem organizado, com regularidade mensal, Oficinas de Cante de Improviso onde cantadores veteranos procuram passar o seu saber a curiosos e interessados por esta forma tão característica de cantar.
Mas depois veio a pandemia. E tudo parou. Foi necessário procurar adaptar esta tentativa de entusiasmar pessoas para abraçar as novas tecnologias, daí ter-se feito vídeos de sensivelmente dez minutos em que dois cantadores esgrimem argumentos entre si, acompanhados à voiola campaniça, num modelo um pouco semelhante ao feito na "Praça da Alegria", com tema sorteado na altura.
E agora chegamos ao estado actual. Que é tudo menos sorridente. Temos, nesta altura, provavelmente, duas dezenas de cantadores ao baldão e ao despique. Só que, dessas duas dezenas, aproveita-se uma mão. E porquê? Porque a) não são capazes de discutir um assunto; b) não são capazes de respeitar o tom da viola campaniça que é suposto orientá-los; c) deixam que questões mesquinhas transtornem a sua forma de pensar e procurem desviar possíveis novos cantadores ("não cantes com aquele gajo, ele é um maniento de primeira e tem a mania que sabe tudo!"); d) apesar de terem uma voz perfeita para o cante, só aparecem quando muito bem lhes apetece e depois de lhes pedirem muito por favor e de joelhos que apareçam; e) só se sentem à vontade para cantar quando estão bêbados - altura em que nada do que dizem faz sentido; f) acreditam que o cante ao baldão deve ser uma mesa cheia de cantadores, e que fora disso não vale a pena meterem-se na roda; g) estão já velhos demais para essas andanças ou com problemas de saúde; e h) algumas ou todas as anteriores. O motivo f), inevitavelmente, acontece em cada festa anunciada nos concelhos de Odemira e Castro Verde - em específico nas Festas de Maio de Amoreiras-Gare e na Feira de Castro Verde - e acaba por resultar em algo que apenas pode ser considerado uma fraca propaganda ao cante de improviso: uma mesa com vinte ou trinta cantadores, em que um canta uma cantiga e só volta a cantar dali a perto de uma meia-hora. Qual é o cantor digno desse nome que consegue ter vontade de cantar nestes preparos? Quando o que é interessante é arranjar-se um tema, discutir-se uma temática, atacar o parceiro do lado por defender a dama errada enquanto apresenta argumentos que sustentam a sua posição... e, quer queiram quer não, esse tipo de cantes, os cantes que motivam, os cantes que têm interesse para o público que assiste, nunca podem ter mais de uma mão-cheia de cantadores; o ideal até seria mesmo cantarem dois a dois, o chamado "cantar de mão a mão", que a velha guarda designa depreciativamente como o "cantar dos manientos". Não há maneira de os promotores destes cantes (do qual a Feira de Castro Verde é o expoente máximo) se aperceberem que ter um cante com muitos cantadores não significa, de todo, ter um bom cante, muito pelo contrário. Basta ver, e continuando no exemplo da Feira de Castro, que, quando o cante começa o Auditório Municipal costuma estar cheio e, quando este termina, conta-se pelos dedos de uma mão a quantidade de gente que ainda lá está a assistir. Todos os anos isto acontece e, todos os anos, ninguém leva as mãos à cabeça e percebe que, se calhar, isto é sinal de que alguma coisa está errada. Se queremos que os jovens ganhem algum entusiasmo pelo cante ao baldão e ao despique, temos de lhes mostrar um cante ao baldão e ao despique mais interessante, mais arrojado, em que os cantadores se mordem uns nos outros, despicam entre si, motivam a audiência a manter-se agarrada às palavras que cada um canta. Uma mesa comprida com mais de vinte pessoas ali sentadas, uma a agradecer o convite que lhe foi dirigido, outro a saudar os presentes, outro a agradecer a qualidade da comida... não é promover o cante de improviso: é matá-lo! E o mais triste é ver uma grande fatia dos cantadores ao baldão a quererem seguir o caminho do Titanic, em vez de procurarem salvar esta tradição e impedir que desapareça - porque a única maneira de o salvar é cativar jovens, colocá-los no trilho certo, apoiá-los, trazê-los para a roda do cante, ensiná-los a estrutura das cantigas e a melodia. O Centro irá voltar a ter Oficinas de Cante de Improviso e aí procuraremos recuperar o tempo perdido com estes dois anos de pandemia, agora que já temos dois jovens capazes de fazer cantigas e de se meterem na roda e pelo menos mais três com interesse de se jogarem.
Há que salvar o cante ao baldão e ao despique da extinção. E dos velhos do Restelo, que só o afundam ainda mais.