17.11.23

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Há memórias e ideias que nunca nos desaparecem da ideia, datas que nos ficam marcadas na memória, principalmente ligadas a pessoas que sempre estiveram connosco e deixam de estar.


A minha avó Emília foi, como todas as avós são (ou devem ser), uma pessoa que me marcou imenso, quer como pessoa quer como, erm… “músico” (hesito sempre nesta parte pois não me considero propriamente músico, mas isso são outros cinco tostões). Sabia cantar belissimamente – aliás, fazia parte de uma irmandade em que todos sabiam cantar bem – e conhecia imensas modas, mais do que as que eu alguma vez poderei vir a saber. Durante a minha “fase de aprendizagem” da viola campaniça, sempre que eu vinha “à terra” passar um fim-de-semana ou umas férias à casa dela, os serões eram quase sempre invariavelmente passados na “divisão de fora” da casa, à luz de um candeeiro a gás (sim, porque isso da electricidade chegar a todo lado é mentira – ainda nos dias de hoje), a ouvi-la mais ao meu tio dizer-me para “experimentar esta moda”, “ai, não conheço”, “então é assim” e cantarem-na e eu, melhor ou pior, a ir atrás com a viola. Graças a esses exercícios, acabei por desenvolver um bocado o ouvido e consigo, com relativa facilidade, ouvir modas alentejanas e passá-las para a viola.


A minha avó nunca chegou a ser gravada e é uma pena. Tanto eu como o meu tio fomos imortalizados, há mais de vinte anos, nas gravações do saudoso Rafael Correia e do seu não menos saudoso programa “Lugar ao Sul” da Antena 1, mas ela não. E talvez merecesse que qualquer um de nós, não só pela quantidade de modas que ela sabia cantar (e bem, não me canso de o referir), mas também pela imensidão de rezas que ela conhecia; por exemplo, mal se ouvia um trovão ao longe começava logo a cantar o “Bendito e louvado” ou a apelar a Santa Bárbara. Existe uma excepção, contudo, pois na reedição do livro “Viola Campaniça – O Outro Alentejo” de 2001, no primeiro CD, a acompanhar o tocador Carlos Alexandre Loução a tocar a moda “Santo Antoninho da Serra”, ela aparece a fazer o alto da moda (integrando um grupo feminino constituído “à pressão” e por ela, pela minha mãe e pela minha prima. Contudo, a minha avó, principalmente nesse final da década de 1990 tinha o hábito de fazer gravações de excertos do programa “Património” da Rádio Castrense – exactamente com o mesmo estilo das gravações que se faziam nos programas de discos pedidos, nem mais – quer de participações de tocadores de viola campaniça, quer de cantes ao baldão… e tem sido um arquivo que, mesmo nos dias de hoje, me tem dado algum jeito mesmo para recuperar vozes antigas que entretanto já desapareceram, ouvir-me inclusivamente a mim a tocar há uns 20-25 anos atrás…


E eis que, numa dessas cassetes que eu há semanas, não sei porquê (ou por alguma mensagem vinda do outro lado, quem sabe?) fui novamente desempacotar das caixas onde estavam arrumadas, entre gravações de cantadores ao baldão e violas campaniças, descubro “auto-gravações”, gravações feitas pela minha avó, a cantar ora a solo ora com a minha prima. Como não gostava que a sua voz se perdesse unicamente nos confins da memória, deixo aqui a Canção da Neve (não confundir com a Balada da Neve do Augusto Gil, SFF) e uma cantiga ao baldão feita por ela e por ela cantada.

 

Por último, porquê falar da minha avó hoje, sabendo que ela fazia anos em Janeiro e foi depois do Natal que ela nos deixou? Porque faz hoje exactamente cinco anos que um AVC fez com que a minha avó, aquela pessoa que eu havia conhecido toda a minha vida, desaparecesse. O corpo ficou cá, paralisado de um lado, mas ela, o seu conhecimento, a sua voz, o seu ser, tudo o que a fazia ela, esfumou-se. Seguiram-se quarenta dias… os Quarenta Dias. Não quero falar sobre esses quarenta dias e sei que os carregarei comigo até ao fim da vida; prefiro recordar antes os 34 anos em que tive aquela pessoa “comigo” e procurar honrar o legado que ela me deixou.

disfunção original de Carlos Loução às 11:15

13.02.23

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Vivemos tempos muito complexos. Temos tudo ao alcance dos dedos (muito mais que no tempo das Páginas Amarelas) – contando, claro está, que se tenha um dos denominados smartphones e um pacote de dados generoso. Ora isto é muito bom se tivermos uma dúvida qualquer no momento (o "tio Google" raramente se engana)… mas traz-nos diversas desvantagens, que afectam principalmente a geração mais nova.

Às vezes, por graça, digo que ser-se pai nos dias de hoje é fácil: basta consumar o acto, esperar nove meses e depois entregar-lhe um telemóvel para as mãos. Isto é um exagero, claro, mas a realidade por vezes não anda muito longe disso. Quantas vezes vamos a um restaurante e vemos casais com os filhos agarrados a um smartphone para aturarem sossegados durante a refeição? Quantas crianças chegam a casa depois da escola que se vão logo agarrar ao tablet ou ao telemóvel dos pais para verem bonecos a tarde inteira até à hora de jantar (ou mesmo depois) porque os pais ou familiares não se estão para se chatear com aquela coisa da educação?

Claro que isto depois causa problemas a quem tem a tarefa de lhes tentar ensinar alguma coisa na escola. Tentar-se ensinar, por exemplo, viola campaniça ou modas alentejanas a crianças que têm a cabeça cheia de TikTok, Reels do Instagram e vídeos de bonecos ou de sucata no YouTube acaba por se tornar tão produtivo como tentar dar banho a um gato bravo. Sai-se da sala de aula desmotivado porque não se conseguiu que meia-dúzia de alunos aprendessem a cantar uma moda como "Dá-me uma gotinha de água", enquanto a rapaziada regressa a casa para continuar a absorver sucata do Enaldinho ou do Luís Bafo Bafo (não consigo encontrar melhor termo, desculpem) e passarem toda a semana a espalharem essa mesma sucata uns com os outros. Poder-se-á argumentar que têm de ser os professores a encontrar alternativas para tornar o ensino da cultura popular mais atractivo para a malta que está agora no 1º Ciclo, e talvez eu seja capaz de concordar com isso; agora, apresentem-me uma receita que resulte. Não acho que tenha de ser eu a dizer aos pais ou encarregados de educação dos alunos "proíbam os vossos filhos de ver sucata nos telemóveis" – ou, melhor ainda, "não entreguem telemóveis ou tablets aos vossos filhos" – pois não sou ninguém para dar conselhos do que fazer a respeito de parentalidade.

Para alguém que gosta de ensinar e gosta de transmitir o pouco que aprendeu em quase um quarto de século como tocador de viola campaniça, é absolutamente destruidor e desmotivante ver meninos e meninas a fazer dancinhas vistas no YouTube no meio da aula e a resistirem a aprender o que (ainda) resiste das nossas tradições. Talvez o problema seja meu, no meio disto tudo, que não estou preparado para lidar com quem não quer aprender ou que, pura e simplesmente, não consegue tornar o ensino uma coisa apetecível e não se adapta às novas tecnologias.

Tudo porque às crianças metem um smartphone ou tablet nas mãos para os manterem sossegados e nem sequer se importam com o que eles vêm. O que importa é os meninos e meninas estarem sossegados e não chatearem. Depois queixam-se, daqui por uns anos, que têm filhos mimados e mal-educados, mal-preparados para a vida. Mas isso é depois, eles que se amanhem. O que importa é estarem sossegados agora.

disfunção original de Carlos Loução às 18:05

11.09.22

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Isto de andar metido em projectos musicais faz com que, às vezes, me veja envolvido em situações que, depois, metemos as mãos na cabeça e pensamos "Que raio acabou de acontecer?" Talvez seja mesmo do meu próprio feitio, ou do facto de ser um tanso / ingénuo / …, mas olho para a vontade de certas pessoas se mostrarem, ou sobressaírem à viva força, e pergunto-me se vale a pena tanta coisa.

Isto tudo derivado de uma série de eventos que tem acontecido mensalmente em freguesias de um concelho alentejano. Depois de uma primeira tentativa, há meses, o projecto que integro recebeu um convite para participar na edição deste mês. E aqui cometeu-se um erro: não se respondeu ao mail recebido – não por maldade, mas apenas por uma questão de ir adiando a resposta até que, eventualmente, a correspondência electrónica entretanto recebida faz desaparecer o dito mail. Eis senão quando, para espanto dos actores do Centro, este aparece na programação do dito evento em todas as redes sociais. Depois de uma troca de ideias, e para não manchar o nome da instituição, cede-se e preparam-se as coisas para o grupo habitual comparecer no evento.

Dia do evento. Chegada ao local. Recepção por parte dos organizadores, tudo normal. O grupo, que consiste em dez alunos e dois monitores, é encaminhado para o local onde irá actuar, que não possui qualquer espécie de amplificação sonora e com cadeiras impróprias para quem vai manusear um instrumento musical (ou seja, com braços). Bom, paciência. Corações ao alto, bola para o mato, etc.. Temos à nossa volta um vasto grupo de pessoas, maioritariamente estrangeiros, de todos os tamanhos, feitios e cortes de cabelo. O silêncio que, por falta da amplificação sonora, acaba por ser imprescindível não existe, mas temos pessoas a olhar para nós, à espera do que vai sair dali. E assim começamos a tocar, apesar de os alunos não se conseguirem ouvir de ponta a ponta. E é então que surgem os telemóveis para nos filmar e/ou fotografar – eu costumo dizer que já fui filmado e fotografado mais vezes do que cabelos que tenho na cabeça, mas depois nunca chego a ver esses registos uma vez que, nos dias de hoje e com as definições de visibilidade das redes sociais, os mesmos apenas ficam visíveis para um grupo restrito de pessoas. Os telemóveis que vejo também me fazem pensar um pouco: uma grande maioria das pessoas que ali estão podem ser consideradas hippies, amantes da Natureza, eco-fundamentalistas, que são contra agricultura intensiva, explorações de petróleo e minas de lítio… todavia não se coíbem de adquirir os mais recentes iPhone ou Samsung ou Huawei ou qualquer outra marca de smartphone. Há alturas em que a hipocrisia humana é absolutamente deliciosa.

Mas continuemos. O grupo faz a sua actuação, o melhor possível face às condições providenciadas, e termina sob um coro de aplausos – nada a apontar ao público. Depois disso alguém (com ênfase no "alguém", não sei se da organização ou não) avisa que haverão pizzas para os miúdos, pelo que se espera mais um bocado, dá-se uma volta ao recinto, vê-se os vendedores de produtos locais, conversa-se aqui e ali com uma ou outra pessoa. As pizzas demoram a chegar – uma vez que são feitas artesanalmente e cozidas num pequeno forno – vêem duas a duas e, no total, são cinco… para dez alunos e dois monitores, devo recordar. Obviamente, à medida que as mesmas chegam imediatamente desaparecem. E depois desta fartura, levanta-se âncora, abandona-se o recinto do evento e regressa-se à base. Isto sem que pessoas da organização digam alguma coisa mais, ou sequer agradeçam pela actuação – ou apareçam, tão-pouco. E quando se abala, no palco principal – sim, havia um palco, se bem que do tamanho duma noz – um grupo ligava os seus instrumentos à aparelhagem de som para começar a tocar daí a pouco.

Gosto que haja eventos, estes fazem falta principalmente quando procuram dar vida ao interior. O problema é quando os eventos que se fazem parecem servir unicamente o propósito de meter alguém em bicos de pés, de mostrar que organização X consegue fazer eventos para promover a ruralidade e os produtos e produtores locais, mesmo que estejam lá muito poucos nativos e uma esmagadora maioria de estrangeiros a expor a sua produção vegetariana / vegana / biológica / …. Sabe-se que acaba por ser um reflexo da densidade populacional do interior do Alentejo, principalmente da zona serrana do Alentejo, mas acaba por ficar sempre um sabor de que estes eventos são direccionados para um público que não é o nativo. E, claro está, com a finalidade de servir de rampa de lançamento para promotores de eventos.

Não gosto de coisas feitas apenas para colocar terceiros debaixo dos holofotes. Mas, acima de tudo, não gosto de coisas feitas com tanta falta de respeito para quem é convidado a lá tocar (o que até nem foi bem o caso, uma vez que nunca houve uma resposta afirmativa ao convite que nos foi endereçado). Até porque este tipo de situações acaba por afectar e desmotivar os nossos alunos e deixar piores que estragados os seus familiares. Todavia acaba por servir de aprendizagem para todos – até para nós, que em casos deste género possivelmente iremos ter outra reacção.

disfunção original de Carlos Loução às 12:00

28.07.22

I Encontro de Tocadores de Viola Campaniça, Março de 2009

(alerta: texto enorme a caminho)

Tenho muitos poucos registos com o meu Mestre, com o meu professor de viola campaniça, com o Ti Manuel Bento. Isso acaba por me encher um bocado de tristeza – mas acaba por ser o reflexo da minha relação com esse tradicional instrumento.
Corria o Verão do ano de 1998. Estávamos de férias na casa da minha avó Emília (Deus lhe tenha a alma em descanso) num monte isolado perto do lugar da Corte Malhão, no concelho de Odemira, daqueles onde a electricidade continua a teimar em não chegar (ainda mesmo nos dias de hoje). Ouvia-se a rádio Castrense às quintas-feiras à noite, com o programa Património a levar até nós as poesias populares, os cantadores ao baldão e os tocadores de acordeão/concertina, harmónica e de uma tal viola que era diferente das de seis cordas, uma vez que era de oito cordas, duas a duas, e tinha uma cinturinha mais delgada. Como eu mostrei algum interesse por aquele instrumento, o meu pai perguntou-me se queria aprender a tocá-lo, tendo eu na altura dito que “porque não?”; e pouco tempo depois tinha nas minhas mãos uma viola daquelas que ouvia tocar no programa Património, feita por um construtor que não morava muito longe dali, Amílcar Martins da Silva (que também era tocador) – reza a lenda que ele achava aquela viola tão ruim que esteve para a atirar para um poço… e acabou por a vender por 50 contos. Antes de ma entregar, tocou um bocado bela para que eu visse como se fazia para se tocar – escusado será dizer que olhei para ele como um burro para um palácio, acabando por não perceber absolutamente nada daquilo. Voltaria lá algumas vezes para que o Sr. Amílcar me afinasse a viola, mas claro que quando eu regressava ao monte a viola já havia desafinado novamente (tempo quente é horrível para se manter um instrumento de cordas afinado, principalmente um de fraca qualidade…).
Durante dias, andei de volta daquela viola, tentando tocar qualquer coisa ali, mas não conseguia perceber a ciência daquilo, conseguia ir tocando qualquer coisinha mas duma forma muito arcaica e nada a ver com o que ouvia na rádio; e poderia ter sido esse o final da história e eu ter passado à História como um dos tentaram aprender a tocar viola campaniça e falharam (numa altura em que o instrumento se encontrava em perigo de extinção por falta de tocadores e por falta de interesse da malta jovem, apesar de o Pedro Mestre já ter começado uns anos antes); porém, não querendo que eu desistisse à primeira contrariedade, o meu pai perguntou-me, desta vez, se achava que devíamos procurar alguém que me ensinasse a tocar na viola campaniça; assenti e fomos à procura de um dos homenzinhos (utilizo esta palavra com carinho) de quem ouvia gravações no tal programa e que era considerado pelos seus pares o melhor tocador de viola campaniça existente, o Ti Manuel Bento. Não me recordo como fomos encaminhados, mas sei que dei por mim (mais o meu pai) no cemitério de Garvão, num funeral, a perguntar aqui e ali onde estava o Ti Manuel Bento. Um conhecido do meu pai lá nos apresentou e desde logo eu percebi que estava frente a frente com uma grande pessoa e um grande ser humano. Simpático, humilde, aceitou sem reservas tomar-me como seu aluno e mesmo nessa tarde, depois do funeral, estivemos os três no Lar de Ourique (seu poiso temporário após as cheias de 1997 o terem desalojado da sua casa na Funcheira) onde o Mestre me disse para esquecer os meus parcos avanços e mostrou os locais onde eu deveria colocar os dedos. Não me ensinou moda nenhuma nesse dia e “despachou-me” para o monte com aquela lição, recebendo a recomendação de que devia treiná-la durante a semana que antecedia a aula seguinte. E assim fiz: de vez em quando, parava as minhas brincadeiras, agarrava-me à viola (mesmo fracamente afinada) e repetia a lição que o Mestre Bento me havia ensinado.
Na semana seguinte, voltamos ao Lar de Ourique e eu mostrei, todo satisfeito, aquilo que eu conseguia fazer; e nesse dia o Ti Bento ensinou-me a minha primeira moda, de seu nome “Erva-cidreira”, curta o suficiente para ser simples mas que já dava para perceber o funcionamento do que tinha aprendido na aula anterior. Voltei para o monte para mais uma semana de treino, que abarquei com a mesma disciplina com que o tinha feito com a lição anterior. Quando regressámos ao Lar de Ourique, todavia, eu seria que aquela iria ser a última lição durante os tempos seguintes: as férias de Verão estavam a acabar, o regresso à Margem Sul estava eminente, pelo que iria estar demasiado longe do Mestre Bento para poder continuar a lá ir. Mesmo assim, mostrei-lhe a minha “Erva-cidreira” e ele transmitiu-me que estava bem tocada; e o meu pai tinha levado um gravador com uma cassete para gravar o Ti Bento e garantir que, durante os meses que eu ia estar na Margem Sul, tivesse algo para ouvir e treinar – muito, muito antes de saber o que era Internet e de haver a imaginar a existência do YouTube. E assim levei comigo a “Erva-cidreira” (para não a esquecer), mais o “Meu lírio roxo do campo” e a “Mariana Campaniça”. Lembro-me de me despedir do Mestre com pena, pois já começava a habituar-me àquela rotina de ir ao Lar de Ourique, de estar com aquele velhote simpático e afável e de aprender o que ele me ensinava. E se ele me queria ensinar! Quero acreditar que o facto de haver um miúdo a querer aprender os toques daquele instrumento o fez animar um pouco, visto ele ainda estar a fazer o luto da perda da esposa Perpétua Maria (também falecida em 1997, antes das cheias) e ter receio de não ter ninguém a quem pudesse passar a sua arte. No dia seguinte, se a memória não me atraiçoa (o que não garanto), eu e os meus pais ainda fomos à missa por alma da sua mulher, realizada na antiga escola primária da Funcheira entretanto convertida em capela.
Acabaram as férias e eu e a minha família regressámos a casa. Ocasionalmente voltávamos à casa da minha avó, sempre com a viola para baixo e para cima a meu lado no banco do Yugo 45A, mas sem tempo de irmos visitar o Mestres Bento para lhe mostrar a minha evolução. Se não me engano, o meu reencontro com ele foi nas férias do Natal, já ele se tinha mudado para umas casas da CP nas imediações da estação da Funcheira. Mostrei-lhe orgulhosamente as minhas três modas, ele sorriu e disse-me que não tinha muito mais para me ensinar, que daí para diante era uma questão de ir treinando e aprendendo modas novas.

A partir daí, a forma da minha aprendizagem modificou-se: depois do jantar, não havia serão que eu não fosse chamado a ir buscar a viola, para a minha avó, o meu tio e a minha mãe me ensinarem modas que eles conheciam (e eles conheciam imensas!) e, de vez em quando, o meu pai lá me levava ao Ti Bento para corrigir alguns erros que eu tivesse nas modas: numas não era preciso mexer em quase nada, noutras lá ouvia “Olhe que essa parte não é bem assim…” e ele mostrava-me como a tocava.
Foi por essa altura que ele me começou a falar no cante ao baldão (outra das coisas que eu ouvia no Património e me fascinava!), da estafa que às vezes apanhava durante esses momentos; ensinou-me a melodia do acompanhamento e convidou-me a aparecer num que iria ter lugar no lugar do Vale Ferro, freguesia de Relíquias, no recinto da antiga escola primária. O meu pai lá me levou e eu acabei por me sentar ao lado do Mestre Bento e de outro homem, também seu aluno mas de 60 anos de idade, de seu nome Antônio Bernardo da Aldeia das Amoreiras, principalmente cantador ao baldão (e que linda voz ele tinha!) mas que estava a aprender também a tocar viola “para haver alguém mais novo a aprender”; e naquela tarde o Ti Bento começou a acompanhar o cante mas, pouco depois, “passou-me a batata quente” e eu tive de me desenrascar com a (pouca) arte que tinha e a (fraca) resistência que tinha. Não me recordo de quanto tempo toquei, se fiz boa figura ou não; a única coisa que recordo dessa tarde é de um dos cantadores, o Marcelino do Castelão (Deus o tenha em descanso) a dizer que tinha trazido uma camisa reforçada para a porrada no cante e de a grande maioria dos cantadores (os com mais arte para isso, vá) se travarem de razões com ele por causa disso. Esse seria o primeiro de muitas centenas de cantes que eu acompanharia ao longo de mais de vinte anos, ao ponto de eu me tornar quase um profissional no acompanhamento no cante ao baldão, sendo chamado para festas, cantes privados, enfim, para acompanhar dezenas e dezenas de cantadores ao baldão, cuja maior parte já faleceu.

A minha ligação com o Mestre Manuel Bento, todavia, estagnou. Admito que tive alguma culpa nisso, mas também não quis incomodar o homem, que entretanto arranjara uma nova companheira. Por essa altura, salvo erro, já ele ensinara o Pedro Mestre e ele, enfim, não só tratou de dar nova vida à viola campaniça e a reconciliou com as demais violas de arame, deu também o destaque merecido ao Ti Manuel Bento, organizando uma homenagem em 2011, homenagem essa onde participei com todo o prazer. A fotografia que encabeça este post foi tirada uns anos antes, no I Encontro de Tocadores de Viola Campaniça, realizado em Castro Verde e organizado pelo Pedro, e nem é uma fotografia per se, mas sim um frame do filme do evento em que a câmara calhou a captar um momento em que eu conversava casualmente com o meu Mestre. Há mais algumas fotografias em que aparecemos os dois, tiradas nessa dita homenagem, mas não posso dizer que tenha uma fotografia tirada de propósito com ele, com o homem paciente e atencioso, que até nem gostava muito de tocar mas que gostava imenso de ensinar e que fez questão de deixar ao máximo possível de pessoas o seu dote e a sua arte.

Nunca tive oportunidade de lhe agradecer a paciência que teve comigo para me ensinar e o ter-me transmitido este saber (que hoje em dia é o meu ganha-pão) – ou falta de acanhamento para lho dizer. E quando faleceu, em 2015, eu estava na altura num estágio na Autoeuropa: o Pedro mandou-me mensagem a dizer que iam fazer uma homenagem no funeral, que gostavam que eu estivesse presente como um dos alunos dele; todavia, devido ao maldito estágio, não pude juntar-me a esse evento – ainda hoje me lamento por isso. Teria tido todo o prazer em tocar, junto ao seu caixão, a moda que ele me ensinou e que eu tocaria tantas horas a fio ao longo da vida, a “Marianita és baixinha”, melodia de acompanhamento ao cante ao baldão…
Não sei o dia ao certo, mas aquele encontro no cemitério de Garvão, há 24 anos, deve ter sido mais ou menos por esta altura. E a vida continua. E se, nos dias de hoje, posso ensinar miúdos e graúdos a tocar viola campaniça, depois de anos em que admito ter tratado esta arte com algum desmazelo, posso agradecê-lo ao Mestre Manuel Bento. Que pena não lho poder ter dito ainda em sua vida. E que pena não o ter feito sentir orgulho neste seu pupilo.

Obrigado. E desculpe.

disfunção original de Carlos Loução às 15:35

01.07.22

Foto: Luís Guerreiro / CMO

Não há como fugir: sempre que se fala de "cantares de improviso", a primeira coisa que as pessoas vão logo buscar é a desgarrada minhota, acompanhada à concertina ou ao acordeão, onde dois cantadores (ou duas cantadoras, ou um casal) ou mais, trocam entre si argumentos, que normalmente, e para gáudio da audiência, acabam sempre por ser questões ligadas com a braguilha. Todavia, Portugal não é apenas e só o Minho, da mesma forma que o fado não é exclusivo de Lisboa: há diversos sítios, de Norte ao Sul do país, passando pelas ilhas, onde se canta de improviso, se desafia o(s) parceiro(s) com cantigas feitas no momento. E, sendo eu alentejano (mesmo que não de nascimento, de família, de moradia, o que quiserem), claro que tenho de me preocupar com as duas formas de cantares ao desafio que aqui temos no Sul do país: o baldão e o despique.

sete anos, prometi que teria de fazer um post sobre esta temática, e desde então o assunto tem ficado na jarra. Engraçado que tenho desde essa altura nos "Rascunhos" desta xafarica um post sobre os cantes de improviso, a explicar como são e como funcionam. Um dia, talvez pegue nele e o acabe, pois talvez esse seja mais importante do que este que estou a fazer, onde basicamente vou confessar o meu desânimo pelo estado dos cantares ao improviso alentejanos.

Em 2014, o Cante Alentejano foi considerado Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO, o que motivou um fluxo de gente a procurar abraçar o cante, a divulgar o cante, a fazer o cante (e a esfaquear o cante de alto a baixo, mas isso são contas de outro rosário). Essa candidatura, claro está, não considerou o parente pobre do cante, ou seja os cantares de improviso - despique e baldão - que, basicamente, foram deixados à sua mercê para se desenrascarem como pudessem para sobreviver. A viola campaniça, por exemplo, e mercê do trabalho incomparável do meu amigo e colega de diversas tardes e noites de folia Pedro Mestre, está mais que salva, pelo menos por mais esta geração. O cante ao baldão e ao despique, ao invés, está em risco de desaparecer em meia-dúzia de anos, se nada fôr feito.

E o que tem sido feito? Algumas coisas. Por duas vezes os cantes de improviso alentejanos foram à rúbrica "Cantares ao Desafio" da "Praça da Alegria" da RTP, tendo da segunda vez alcançado um mui honroso segundo lugar na final. E o "Cante ao Baldão acompanhado à Viola Campaniça" também figurou no concurso das "7 Maravilhas da Cultura Popular", tendo ficado em 2º lugar na final regional e figurando no programa de repescagem. Pode parecer pouco, é certo, mas foram formas de mostrar ao país (e ao mundo lusófono, já agora) que existe esta forma de cantar, que está em risco de desaparecer e que urge fazer algo urgente por ela. Para além disso, o Centro de Valorização da Viola Campaniça e do Cante de Improviso, sediado em São Martinho das Amoreiras (concelho de Odemira), tem organizado, com regularidade mensal, Oficinas de Cante de Improviso onde cantadores veteranos procuram passar o seu saber a curiosos e interessados por esta forma tão característica de cantar.

Mas depois veio a pandemia. E tudo parou. Foi necessário procurar adaptar esta tentativa de entusiasmar pessoas para abraçar as novas tecnologias, daí ter-se feito vídeos de sensivelmente dez minutos em que dois cantadores esgrimem argumentos entre si, acompanhados à voiola campaniça, num modelo um pouco semelhante ao feito na "Praça da Alegria", com tema sorteado na altura.

E agora chegamos ao estado actual. Que é tudo menos sorridente. Temos, nesta altura, provavelmente, duas dezenas de cantadores ao baldão e ao despique. Só que, dessas duas dezenas, aproveita-se uma mão. E porquê? Porque a) não são capazes de discutir um assunto; b) não são capazes de respeitar o tom da viola campaniça que é suposto orientá-los; c) deixam que questões mesquinhas transtornem a sua forma de pensar e procurem desviar possíveis novos cantadores ("não cantes com aquele gajo, ele é um maniento de primeira e tem a mania que sabe tudo!"); d) apesar de terem uma voz perfeita para o cante, só aparecem quando muito bem lhes apetece e depois de lhes pedirem muito por favor e de joelhos que apareçam; e) só se sentem à vontade para cantar quando estão bêbados - altura em que nada do que dizem faz sentido; f) acreditam que o cante ao baldão deve ser uma mesa cheia de cantadores, e que fora disso não vale a pena meterem-se na roda; g) estão já velhos demais para essas andanças ou com problemas de saúde; e h) algumas ou todas as anteriores. O motivo f), inevitavelmente, acontece em cada festa anunciada nos concelhos de Odemira e Castro Verde - em específico nas Festas de Maio de Amoreiras-Gare e na Feira de Castro Verde - e acaba por resultar em algo que apenas pode ser considerado uma fraca propaganda ao cante de improviso: uma mesa com vinte ou trinta cantadores, em que um canta uma cantiga e só volta a cantar dali a perto de uma meia-hora. Qual é o cantor digno desse nome que consegue ter vontade de cantar nestes preparos? Quando o que é interessante é arranjar-se um tema, discutir-se uma temática, atacar o parceiro do lado por defender a dama errada enquanto apresenta argumentos que sustentam a sua posição... e, quer queiram quer não, esse tipo de cantes, os cantes que motivam, os cantes que têm interesse para o público que assiste, nunca podem ter mais de uma mão-cheia de cantadores; o ideal até seria mesmo cantarem dois a dois, o chamado "cantar de mão a mão", que a velha guarda designa depreciativamente como o "cantar dos manientos". Não há maneira de os promotores destes cantes (do qual a Feira de Castro Verde é o expoente máximo) se aperceberem que ter um cante com muitos cantadores não significa, de todo, ter um bom cante, muito pelo contrário. Basta ver, e continuando no exemplo da Feira de Castro, que, quando o cante começa o Auditório Municipal costuma estar cheio e, quando este termina, conta-se pelos dedos de uma mão a quantidade de gente que ainda lá está a assistir. Todos os anos isto acontece e, todos os anos, ninguém leva as mãos à cabeça e percebe que, se calhar, isto é sinal de que alguma coisa está errada. Se queremos que os jovens ganhem algum entusiasmo pelo cante ao baldão e ao despique, temos de lhes mostrar um cante ao baldão e ao despique mais interessante, mais arrojado, em que os cantadores se mordem uns nos outros, despicam entre si, motivam a audiência a manter-se agarrada às palavras que cada um canta. Uma mesa comprida com mais de vinte pessoas ali sentadas, uma a agradecer o convite que lhe foi dirigido, outro a saudar os presentes, outro a agradecer a qualidade da comida... não é promover o cante de improviso: é matá-lo! E o mais triste é ver uma grande fatia dos cantadores ao baldão a quererem seguir o caminho do Titanic, em vez de procurarem salvar esta tradição e impedir que desapareça - porque a única maneira de o salvar é cativar jovens, colocá-los no trilho certo, apoiá-los, trazê-los para a roda do cante, ensiná-los a estrutura das cantigas e a melodia. O Centro irá voltar a ter Oficinas de Cante de Improviso e aí procuraremos recuperar o tempo perdido com estes dois anos de pandemia, agora que já temos dois jovens capazes de fazer cantigas e de se meterem na roda e pelo menos mais três com interesse de se jogarem.

Há que salvar o cante ao baldão e ao despique da extinção. E dos velhos do Restelo, que só o afundam ainda mais.

disfunção original de Carlos Loução às 17:26

01.07.15

Buckets-of-Shit.jpg

(f...-se, que hoje abusei no tamanho do título...)

Durante anos, os Estados Unidos da América foram a terra do "sonho americano", onde qualquer pessoa podia seguir o seu sonho e atingir o sucesso. Nos dias de hoje, todavia, eu diria que os States já foram ultrapassados por um país bem mais pequenino: Portugal. E isto porquê? Porque não há idiota nenhum que não consiga ter sucesso - bastando, claro está, "cair em graça".

Quer dizer, todos nós reclamamos que Portugal é um país governado por ladrões e oportunistas, que se movem unicamente para encher os seus próprios bolsos: esse tema é longo de discutir; mas, se damos oportunidade de outros oportunistas e idiotas singrarem na vida e encherem-se de papel, que moral temos para reclamar dos engravatados partidários?

Mas enfim, essa questão ficará, possivelmente, para outra altura.

Esta posta (nome bonito, diga-se... deve ser do cheiro a peixe podre) é motivada por um acontecimento do dia de hoje que marcou a minha vida por completo: peguei num livro do Pedro Chagas Freitas. E li duas páginas do mesmo. A minha conclusão foi apenas e só uma: como é que é possível algo tão vazio de substância vender tanto, por Deus? Como é que é possível um livro cheio de frases órfãs de interligação entre elas estar nas listas dos livros mais vendidos em Portugal? Vejamos aqui alguns excertos retirados ipsis verbis até no formato e tudo:

      hoje estou triste porque não escreveste para mim,

      quando fazes beicinho o sol concentra-se no interior dos teus olhos, e tudo à volta escurece,

      e aqui estou eu a escrever,

      já estás a ficar melhor, estás?,

     o teu corpo contra o ar é uma espécie de atestado de incompetência para a natureza, como pode a matéria interromper o correr do tempo?,

      podia escrever hoje sobre o sorriso do teu biquini junto à piscina,

     as vezes que te amei nos meus pensamentos, e de que maneira, é melhor nem te dizer para não te chocar,

      desculpa,

      mas em todos os pensamentos acabámos com um orgasmo,

      que maravilha,

      és tão casta e tão esfomeada,

      no lugar onde estou já te despi várias vezes, e é possível, sim,

     não te rias e me venhas com essa ideia quadrada de que só se despe uma vez, porque depois está despido já,

      não está, amar-te é despir-te várias vezes no mesmo corpo, como se houvesse camadas de nudez,

      e há, só quem nunca se despiu ainda não o percebeu,

      está a ficar bom o texto?, serve-te para me quereres para todo o sempre?,

      (...)

 

original.jpg

A sério, há alguém a quem esta ladaínha toda faça algum sentido? Confesso que li uma página para a frente, para trás, de cima para baixo, de baixo para cima, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda e continuei sem perceber um cartucho daquilo. Também pensei que o livro estivesse escrito num idioma próximo do português mas cujas palavras tivessem significados diferentes - neste momento, é a única ideia que para mim faz sentido.

Gostava de conhecer uma confessa apreciadora dos livros e textos do Pedro Chagas Freitas; gostava que ela me explicasse qual a mensagem escondida no que ele escreve. É que, do meu ponto de vista, os conteúdos dos canhenhos de sua autoria são coisas que parecem sair de um gerador de textos aleatórios, que junta frases sem qualquer sentido umas com as outras, sem que haja um princípio, meio ou fim declarados e confessos, sem que haja um mínimo de fio condutor em todas e quaisquer páginas? Será que isto dos livros é como aqueles quadros que não passam de rabiscos ou esculturas que não passam que perfeitos mamarrachos e que, nos leilões são arrebatados por centenas de milhões de euros? Ou será esta a resposta feminina (sim, porque, convenhamos, a maioria de leitores dos livros do Pedro Chagas Freitas pertence ao sexo oposto) a revistas como a Penthouse, Playboy, Maxmen (nem sei se elas ainda existem, mas vocês percebem a ideia) ou a jornais, publicações em que não é preciso gastar muita massa cinzenta para as compreender?

Confesso que eu sou da velha guarda, prefiro ler livros com um fio condutor, que me prendam à acção, que me façam não o conseguir largar até chegar à última página, sem chegar ao final da meada, sem chegar àquela palavra de três letrinhas que assinala o término do livro ('fim', para os mais distraídos). Gosto de livros que me façam sentir que não dei o meu tempo por perdido ao dedicar-me à sua leitura. E isto, lamento... mas, durante os cerca de dois minutos que perdi a tentar decifrar os textos contidos naquelas páginas, senti neurónios a definhar e morrer sob gritos de agonia extrema. O que já me deixa com poucos...

Podia acabar este desabafo com um "eu consigo escrever melhor que aquilo!" e colocar, como prova, um link para um outro projecto que eu tenho, mais underground, de textos de cariz mais picante. Todavia, como poderíeis apontar e bem, ele está cheio de chuchu (ou tão cheio de chuchu como um escritor em Portugal pode ter), enquanto eu não passo de um gajo com uma fanbase exponencialmente reduzida (se é que existe, de facto).

Touché, meus caros. Touché.

música: Airwave - Candy of Life
disfunção original de Carlos Loução às 21:50

15.01.15

Fonte: livro "Viola Campaniça - O Outro Alentejo", do Dr. José Alberto Sardinha, ed. Tradisom

 Se falarmos do nome "Manuel Bento", 99,95% das pessoas lembrar-se-ão imediatamente do guarda-redes de Riachense, Goleganense, Barreirense, Benfica e Selecção Nacional, desaparecido há perto de sete anos. Todavia, há um grupo bastante mais pequenino de pessoas, com ligação à cultura e às tradições do Alentejo, que se recordarão de um homenzinho, originário da Aldeia Nova – aglomerado de casas submerso pela Barragem do Monte da Rocha, perto de Ourique, muito antes de se falar em Alqueva e em deslocalizar aldeias – que se tornou conhecido por ser um fenomenal executante de viola campaniça, a viola tradicional do Alentejo, de quarto ou cinco cordas duplas e que esteve perto da extinção na década de 70 do século passado mas que ressurgiu anos mais tarde graças ao programa “Património” da Rádio Castrense e à primeira edição do livro “Viola Campaniça – O Outro Alentejo”, do Dr. José Alberto Sardinha – mas o assunto e história da viola campaniça é longo, merecedor de um post dedicado exclusivamente a isso.

Voltemos, assim, à vaca fria. Sim, este post é sobre esse Manuel Bento, desconhecido da esmagadora maioria da população portuguesa. O Ti Manuel Bento.

 

Muitos de vós estarão a ler isto e a pensar “porque raio está este gajo a falar de um velhote que toca guitarra viola1 no Alentejo?”. A questão é respondida em duas partes. Em primeiro lugar, porque o Ti Manuel Bento é um baluarte da cultura alentejana, sempre com a sua viola campaniça a tocar, seja a acompanhar cante a baldão2 ou modas alentejanas; e neste aspecto das modas, ele, a mulher, a Ti Perpétua Maria, e o seu tio (apesar de mais novo que ele dois anos), Francisco António Bailão, formaram um grupo que ficará para sempre na memória de todos os que são apaixonados pela música alentejana, que viajou pelo país e além-fronteiras sempre a espalhar a cultura e a música do Baixo Alentejo.

Em segundo lugar, porque o Ti Manuel Bento, último resistente desse trio que me encantou (e continua a encantar, por intermédio de gravações) em moço novo, deixou-nos ontem.

 

Conheci-o em 1998. Na altura, eu era um puto de 14 anos, estava de férias na minha terra (um monte perdido na freguesia de São Martinho das Amoreiras, concelho de Odemira) mais a minha família, com uma viola campaniça oferecida por meu pai. Depois de alguns dias de roda dela, a tentar perceber como funcionava aquele instrumento, o meu pai deu-me a ideia de procurarmos o Ti Bento para me dar umas lições de como tocar na campaniça. Naquela altura, ele encontrava-se no Lar de Ourique após as grandes cheias de 1997 que lhe inundaram a sua casita na Funcheira. Recordo-me que, curiosamente, fomos ter com ele ao cemitério de Garvão, pois havia ido ao funeral de uma pessoa amiga. Falámos com ele, na possibilidade de me dar umas lições de viola campaniça, e logo no primeiro contacto foi mais que evidente a sua simpatia e solicitude para ensinar, para que aquele toque não se perdesse, pois “já só uns velhotes é que tocam isto, quando nós morrermos, acaba-se a viola”. Depois do serviço fúnebre, demos-lhe boleia até Ourique e naquela tarde ele ensinou-me os pontos principais da viola, onde devia colocar os dedos, e regressámos ao monte. Pratiquei e pratiquei e, dias mais tarde, regressei a Ourique para mostrar-lhe se estava a ir bem. Ele nessa altura ensinou-me a tocar a Erva Cidreira, uma moda simples mas que permitia compreender bem os pontos que eu havia aprendido anteriormente. Mais uma vez regressei ao monte, pratiquei e pratiquei e regressei lá uns dias mais tarde, para mais uma aula, levando um rádio com gravador para se gravar mais umas modas – pois as férias estavam a acabar e, poucos dias depois, regressaríamos à urbe. O Ti Bento tocou o Meu Lírio Roxo do Campo e a Mariana Campaniça para gravarmos e disse-me que o essencial eu já sabia, agora era praticar. E foi isso que fiz. Recordo-me ainda que por essa altura eu mais a minha família fomos à missa de um ano da sua mulher e companheira de cante, a Ti Perpétua, falecida em 1997 (obviamente), numa antiga escola convertida em capela na Funcheira. Meses mais tarde, quando fomos de férias lá abaixo pelo Natal, salvo erro, fomos ter com ele novamente, creio que já numa casita apertada na Funcheira, propriedade da CP onde havia sido realojado após sair do lar, mostrei-lhe os meus avanços e ele sorriu, dizendo que não precisava de lá ir mais para aprender, que comigo e com o Pedro Mestre, um rapazito que andava a aprender com o Ti Chico Bailão, a viola campaniça poder-se-ia manter ainda mais uns anos – hoje em dia, o Pedro Mestre é o principal impulsionador da viola campaniça no Baixo Alentejo, com inúmeras iniciativas para incentivar o toque junto dos jovens, conseguindo mesmo ter uma escola de miúdos que hoje em dia já tocam a viola campaniça.

 

Com a morte do Ti Manuel Bento, desaparece o último resistente de uma geração de tocadores de viola campaniça que foi praticamente esquecida nas décadas de 1960 e 1970 e que acabaria, através de algumas coincidências e timings felizes, por estar na base do ressurgimento deste instrumento tão castiço. Uma geração que incluía gente cujo talento era directamente proporcional à sua anonimidade, como, para além dos já citados Ti Bento e Ti Chico, o Ti Manuel Verónica (que Ti Bento jurava ser o melhor tocador que ele alguma vez viu, melhor mesmo que ele próprio), com um estilo diferente do que se ouve nos dias de hoje, ou o Ti António Jacinto Figueirinhas, o primeiro tocador a ser encontrado pelo Dr. José Alberto Sardinha – encontro esse que acabaria por lançar este advogado na rota da viola campaniça, resultando na primeira edição do livro+vinil “Viola Campaniça – O Outro Alentejo”, publicação que acabou por despoletar o ressurgimento deste instrumento. Quero imaginar que, neste momento, o Ti Bento já se juntou à Ti Perpétua e ao Ti Chico e que andem agora a inundar o Céu com modas alentejanas, ou que estará a acompanhar o cante a baldão com cantadores como o António Bernardo, o António do Pinho, o Leonel do Salgueiro, o Ti Cremilde, entre tantas outras vozes que já nos deixaram.

Até sempre, Mestre.

 

 

 


1- Tem sido uma coisa que me tem mexido com os nervos, falarem de “guitarra campaniça”, ou guitarra. Viola é viola, guitarra é guitarra, gaita!

2- Forma de cante a desafio, por norma (mas não obrigatoriamente) acompanhada a viola campaniça. Também seria um bom tema para um post, falar disto.

disfunção original de Carlos Loução às 16:24

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