29.02.12

© Ricardo Ferreira

Dia após dia, vejo quem defenda que todas as peças do Museu Nacional Ferroviário deveriam estar em estado de marcha, prontas para toda a espécie de charters que possam vir a surgir. Que o MNF deveria ser um museu vivo, à imagem dos outros museus da Europa, com comboios especiais a circularem todas as semanas para os aficionados. Nisso, tenho de ser honesto: gostaria do mesmo, mas percebo perfeitamente porque tal não acontece.

O povo português, no seu geral, não é um povo que respeite muito a sua história ou o seu legado. Longe vão os tempos em que os alunos da primária tinham de saber de cor o nome de todos os rios e das serras nacionais (para além dos das províncias ultramarinas!), onde se sabiam as datas mais marcantes da História de Portugal (uma História em que os portugueses eram sempre retratados como heróis, é um facto), só para dar um exemplo. Hoje em dia, chegamos ao cúmulo de ter feriados em que as pessoas não fazem a mais redonda ideia do que assinalam, ou de, nos concursos de cultura geral que passam na televisão, verem-se argoladas inimagináveis.
Onde quero chegar com isto? Que o português de hoje em dia não se interessa pela sua história. Pegando nos dados do Instituto dos Museus e da Conservação, em 2010, os museus e palácios ao cuidado da instituição foram visitados por 2,4 milhões de pessoas, dos quais 1,4 milhões eram portugueses. Ou seja, em média e contando com as pessoas que terão feito mais do que uma visita, um em cada dez portugueses deu-se ao trabalho de ir visitar os museus e palácios da sua terra, de ouvir as histórias que estes contam, de admirar os objectos neles preservados.
Depois desta introdução algo maçuda, passemos então para o caso específico da ferrovia. Infelizmente, não é possível consultar os números de visitantes que têm ido até à secção museológica do Entroncamento – para além das restantes secções espalhadas pelo país – mas não tenho grandes dúvidas que seja um número algo baixo. Horários mal elaborados, falta de interesse no que lá está exposto, pouca vontade em ir ver as peças que estão em exibição, vontade de “eles” fecharem as respectivas secções? Perguntem a três pessoas, e decerto obterão três respostas diferentes (algumas até que nem figurem na lista das que proferi). A minha ideia tem a ver com aquilo que já disse nos dois últimos parágrafos. Não há interesse para ver as coisas do nosso passado – e, para além disso, muita gente pensa “comboios? Quem é que se interessa por comboios? Só os maluquinhos!” Claro, poder-se-á contrapor com o exemplo do Histórico do Douro – que, diga-se, tão mal-tratado tem sido pela CP – mas pagar 45€ por pessoa, nos dias de hoje e com a crise a afectar as bolsas em geral, é algo que cada vez menos portugueses têm possibilidade de fazer. E assim, por muita boa vontade que haja do MNF (porque não admito que seja a CP a tratar deste tipo de comboios) em querer restaurar tudo, eu pergunto “para quê?”. Para se ter tudo a postos para comboios que, ultimamente, até nem sequer têm sido realizados (qual foi a última vez que se ouviu falar de uma empresa organizar um comboio especial para levar os seus funcionários de passeio? Creio que o último charter pedido, se a memória não me falha, foi pelo Sport Lisboa e Benfica, para levar adeptos ao Porto)? Ou pura e simplesmente para os eventos do Portuguese Traction Group? Justifica, a sério, ter-se dez, quinze locomotivas em estado de marcha, gastar manutenção com elas para algumas vezes para, no final de contas, utilizar-se uma ou duas delas num ano? A experiência de Outubro de 2009, em que a 2501 fez um curto de trajecto entre o Entroncamento e a Barquinha com uma carruagem carregada de entusiastas, poderia ser um sinal do caminho a seguir… mas será que há mole humana que justificasse um passeio destes todos os meses, com umas quatro ou cinco carruagens atrás? A sério, gostava que houvesse alguém que me respondesse a essa pergunta.
Uma outra solução para isso era entrarem em cena associações ou grupos de entusiastas, como há em França ou em Inglaterra. Meia-dúzia de pessoas juntarem-se, em colaboração com o MNF, e tratarem do restauro e manutenção de uma locomotiva, ou automotora, voluntariamente. Será assim tão difícil, ou estará tudo com medo de dar o primeiro passo? Ou pura e simplesmente, à boa maneira portuguesa, quererão todos que as coisas apareçam feitas por “eles”, pagas pelo Estado (e por pessoas que se estão pouco borrifando para comboios e para a preservação ferroviária) e pela FMNF? Será que é assim que as coisas se processam noutros locais onde a preservação é levada mais a sério, estando sempre dependentes do Estado? Ou, mais grave ainda, será que as pessoas se afastam por verem que pessoa x, y ou z estão de roda de um projecto?
Demasiadas perguntas – simbolizando, de facto, aquilo que é a preservação ferroviária em Portugal: um enorme ponto de interrogação.

 


(texto presente na Trainspotter nº 19, de Fevereiro de 2012. Sim, eu sei, ando a repetir-me muito. Mas ando sem grande vontade de escrever os textos de outrora...)

disfunção original de Carlos Loução às 18:28

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